Vida do Papa São Cornélio e São Cipriano de Cartago, mártires (16 de setembro)
- Sacra Traditio

- 16 de set.
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Devido à violência da perseguição de Décio, a Sé pontifical de Roma permaneceu vacante por mais de doze meses após o martírio do Papa São Fabiano, até que o sacerdote Cornélio foi eleito Papa, “pelo juízo de Deus e de Jesus Cristo, pelo testemunho da maioria do clero, pelo voto do povo e com o consentimento dos sacerdotes anciãos e dos homens de boa vontade”, segundo nos diz São Cipriano. “Aceitou com coragem o episcopado, ocupou com firmeza a cadeira sacerdotal, forte de espírito, firme em sua fé, em momentos em que o tirano (Décio), movido por seu ódio aos bispos, proferia terríveis ameaças contra eles e se preocupava mais em exterminar o novo bispo de Deus em Roma do que em aniquilar o príncipe rival no império”. Contudo, os primeiros problemas do novo Papa surgiram não tanto do poder secular quanto das dissensões internas, embora estas se derivassem da mesma perseguição ou, melhor dizendo, da cessação temporária daquela perseguição.
Enquanto a Sé de São Pedro esteve vacante, produziu-se na África uma disputa sobre a forma como deviam ser tratados os apóstatas, e havia-se constituído um partido que estava a favor da indulgência e que ameaçava a disciplina canônica e a autoridade episcopal. O bispo de Cartago, São Cipriano, havia escrito a Roma pedindo apoio a seu ponto de vista de que os apóstatas arrependidos só podiam ser readmitidos na comunhão por livre decisão do bispo. Um sacerdote chamado Novaciano, dirigente entre o clero romano, havia respondido para aprovar a opinião de São Cipriano, mas não sem insinuar que adotasse uma atitude mais severa. Poucas semanas depois da eleição de Cornélio, o sacerdote Novaciano se autoproclamou bispo de Roma [tornando-se o segundo antipapa da história da Igreja] em oposição ao Papa. Um de seus primeiros atos foi negar que a Igreja tivesse algum poder para perdoar os apóstatas, por mais arrependidos que estivessem e por muitas penitências que tivessem praticado. Aquele advenedizo acrescentou à apostasia como “pecados imperdoáveis” o homicídio, o adultério e a fornicação. O antipapa Novaciano, assim como seu antecessor antipapa Hipólito, opôs ao Papa legítimo sua habilidade e inteligência superiores; a longo prazo foi vencido pelo orgulho e pela ambição, mas não sem ter chegado a ser o primeiro antipapa propriamente dito e o chefe de uma seita herética que, pelo menos na África, subsistiu durante vários séculos. O Papa Cornélio, por sua vez, contava com o apoio de São Cipriano e dos outros bispos africanos em sua posição de que a Igreja tinha o poder de perdoar os apóstatas arrependidos e de admiti-los novamente em sua comunhão, depois da devida penitência; contava ainda com a simpatia dos bispos do Oriente, e assim foi como, durante um Sínodo de Bispos Ocidentais em Roma, foram condenadas as doutrinas de Novaciano e excomungados seus seguidores.

A perseguição contra os cristãos intensificou-se novamente no início do ano 253, e o Papa foi desterrado a Centumcellae (Civitavecchia). Cipriano, que tinha grande admiração por São Cornélio, escreveu-lhe uma carta congratulatória por ter podido gozar da felicidade de sofrer por Cristo e, mais ainda, pela glória de sua Igreja, já que nenhum cristão romano havia renegado da fé. “Com um só coração e a uma só voz, toda a Igreja romana confessou. Assim se manifestou, meu muito amado irmão, a fé que louvava o bem-aventurado Apóstolo (Cf. São Paulo aos Romanos 1,8) e manifestou-se em ti, porque, desde então, ele previa em espírito tua gloriosa fortaleza e a segurança da tua fé”. São Cipriano vaticina claramente a São Cornélio o conflito em que ambos iam ver-se envolvidos e acrescenta em sua carta: “Qualquer de nós que seja o primeiro a empreender a viagem, que nossa caridade persevere e nunca cessem as preces ao Pai por nossos irmãos e nossas irmãs”. São Cornélio foi o primeiro a ser chamado, em junho do mesmo ano de 253. Com frequência, São Cipriano se refere a ele como mártir, mas, embora os relatos posteriores afirmem que foi decapitado, o mais provável é que não tenha sido executado diretamente, mas que tenha morrido em consequência das penúrias, fadigas e sofrimentos de seu desterro em Centumcellae. Seu corpo foi levado a Roma e enterrado ali, não no cemitério dos Papas propriamente dito, mas em uma cripta próxima a Lucina que talvez fosse o lugar de sepultura da gens Cornelia, família à qual se dizia que o Papa pertencia.
A amizade de São Cipriano de Cartago foi o grande apoio do Papa São Cornélio como Sumo Pontífice e como defensor da Igreja contra o rigorismo de Novaciano, e a estreita associação entre ambos foi reconhecida, desde então, como de grande valor. No túmulo de Cornélio conservou-se a memória de São Cipriano no século IV, por meio de uma inscrição e, quatro séculos depois, pintou-se a imagem do bispo de Cartago nos muros da cripta; aos dois se nomeia juntos no Cânon da Missa no dia 14 de setembro, data do martírio de São Cipriano e, dois dias depois, celebra-se sua Festa em toda a Igreja do Ocidente.

A história de São Cornélio compreende um episódio muito importante na história eclesiástica e, desde Eusébio, chamou a atenção de todos os escritores que se ocuparam da Igreja Cristã em seus primeiros tempos. Além do Acta Sanctorum, setembro vol. IV, e dos trabalhos de Grisar, Duchesne, J. P. Kirsch, etc., consulte-se A. d’Ales, em Novaciano (1925) e J. Chapman, em Studies on the Early Papacy (1928), pp. 28 e ss. Quanto ao martírio, ao lugar de sua sepultura, à inscrição e ao fresco de São Cipriano na catacumba, veja-se Wilpert em La cripta dei Papi e la capella di Santa Cecilia (1910); Franchi de Cavalieri, em Note Agiografiche, vol. VI, pp. 181-210; e Delehaye em Analecta Bollandiana, vol. XXIX (1910), pp. 185-186. Leclercq em DAC (vol. III, cc. 2968-2985) reproduz várias ilustrações de De Rossi e Wilpert. A chamada paixão de São Cornélio (cujas várias redações estão catalogadas em BHL, nn. 1958-1966) é um documento sem valor histórico. [1]

São Cipriano desempenhou um papel importantíssimo na história da Igreja do Ocidente e no desenvolvimento e progresso do pensamento cristão durante o século III, particularmente na África, onde sua influência foi preponderante. Pelo seu prestígio pessoal mais que pelo de sua sede, chegou a ser reconhecido, de fato, como o Primaz da Igreja africana e no Cânon da Missa Romana é mencionado diariamente. Seu nome completo era Cecílio Cipriano, seus íntimos o chamavam Táscio e veio ao mundo por volta do ano 200, possivelmente em Cartago. Seguramente era nativo da África Proconsular, pois assim afirma São Jerônimo. É muito pouco o que se sabe de sua vida antes de sua conversão ao cristianismo: era orador público, professor de retórica, advogado nos tribunais e participava ativamente da vida pública e social de Cartago. O instrumento de Deus em sua conversão, já não sendo jovem, foi um ancião sacerdote chamado Cecílio, a quem o santo respeitou e venerou sempre como a um pai e anjo da guarda. Cecílio, por sua vez, confiava inteiramente na virtude de seu discípulo e, quando se encontrava em seu leito de morte, encomendou ao cuidado e proteção de Cipriano sua esposa e seus filhos. Ao abraçar o cristianismo, a vida de Cipriano mudou radicalmente. Antes de receber o batismo, fez o voto de manter perfeita castidade, o que deixou assombrados os cartagineses e até surpreendeu seu biógrafo, São Pôncio, que exclamou: “Quem jamais viu um milagre semelhante!”
Ao estudo detido das Sagradas Escrituras, Cipriano acrescentou o dos seus melhores expositores e comentadores, de modo que, em pouco tempo, familiarizou-se com os trabalhos dos maiores escritores religiosos de sua época. Deleitava-se particularmente com os escritos de seu compatriota Tertuliano; quase diariamente lia alguma passagem e, quando queria consultá-lo, dizia: “Vejamos o que diz meu mestre”. Não foi o menor de seus sacrifícios renunciar a toda a literatura profana, e em nenhum de seus numerosos escritos há sequer uma citação de qualquer autor pagão. Pouco depois de convertido, recebeu Cipriano as ordens sacerdotais e, em 248, foi designado para ocupar a sede episcopal de Cartago. No início recusou-se com tanta veemência a aceitar o cargo, que chegou a tentar fugir, mas finalmente compreendeu que seria inútil resistir e consentiu em ser consagrado bispo. Alguns sacerdotes e boa parte do povo se opuseram à sua eleição, que, no entanto, se realizou com plena validade, “de acordo com o juízo divino, a voz do povo e o consentimento do episcopado”. Cipriano administrou seu cargo com caridade, bondade e coragem, virtudes que soube combinar com energia e prudente serenidade. Sobre seu aspecto físico, Pôncio nos diz que era majestoso e atraente a ponto de inspirar confiança à primeira vista e que ninguém podia olhar seu rosto sem sentir admiração; em seu porte notava-se um equilíbrio singular entre alegria e gravidade, de modo que todo aquele que o tratava não sabia se devia amá-lo ou respeitá-lo mais; mas o certo é que merecia o máximo respeito e o maior amor.
Desde sua elevação à sede de Cartago até pouco mais de um ano depois, a Igreja gozou de paz perfeita, mas o imperador Décio, ao assumir o poder, iniciou seu reinado com uma perseguição. O período de tranquilidade e prosperidade havia enfraquecido os cristãos, de modo que, ao ser anunciado em Cartago o édito persecutório, apressaram-se a comparecer ao capitólio para registrar sua apostasia diante dos magistrados e somar-se aos grupos de pagãos que percorriam as ruas gritando: “Cipriano aos leões!” O bispo foi proscrito, e ordenou-se a confiscação de seus bens, mas já então ele se havia retirado a um esconderijo seguro, enquanto sua atitude suscitava críticas tanto em Roma como na África. Cipriano julgou prudente defender-se e expôs as razões que o justificavam em uma série de cartas dirigidas ao clero. Não há dúvida de que ao esconder-se, em tais circunstâncias, agiu com sabedoria. De seu refúgio substituiu a presença pessoal entre os fiéis por frequentes epístolas exortando-os à oração contínua.
“Pedi e recebereis”, dizia-lhes. “Que cada um de nós rogue a Deus não só por si mesmo e por suas próprias necessidades, mas por todos os irmãos, segundo o modelo que nos deixou o Senhor, no qual aprendemos a rezar em comum, como uma fraternidade, por todos em conjunto e não apenas por nós individualmente. Quando o Senhor nos vir humildes, pacíficos, unidos entre nós, com o propósito de melhorar através de nossos sofrimentos presentes, nos salvará das mãos de nossos perseguidores”.

Afirmava-lhes que aquela tempestade havia sido revelada por Deus, antes que se produzisse, a uma devota de Cartago por meio de uma visão do inimigo sob a figura de um retiarius [a] prestes a matar os fiéis, porque estes não estavam em guarda. Na mesma carta mencionava outra revelação recebida de Deus, sobre o fim da perseguição e a restauração da paz à Igreja. Com tais cartas de seu esconderijo, o bispo advertia e animava seu rebanho, fortalecia os confessores prisioneiros e recomendava aos sacerdotes que os visitassem por turnos e arranjassem modo de lhes dar a comunhão nos cárceres.
Durante a ausência de São Cipriano, um dos sacerdotes que haviam se oposto à sua eleição episcopal, chamado Novato, declarou-se abertamente em cisma. Alguns apóstatas e também alguns confessores contrários à disciplina que São Cipriano aplicava aos renegados aderiram ao cismático, pois Novato recebia sem nenhum requisito nem penitência canônica todos os apóstatas que quisessem retornar à comunhão da Igreja. São Cipriano denunciou Novato e, durante um Concílio convocado em Cartago, quando a perseguição amainou um pouco, leu o tratado que havia escrito sobre a unidade da Igreja.
“Há”, dizia nele, “um só Deus, um só Cristo e apenas uma cátedra episcopal, originalmente fundada sobre Pedro pela autoridade do Senhor. Portanto, não se pode estabelecer outro altar nem outro sacerdócio. E se qualquer homem, movido por sua ira ou temeridade, estabelece outro em aberto desafio à instituição divina, sua ordenança será espúria, profana e sacrílega”.
Ou seja, assim como Pedro é o fundamento terreno de toda a Igreja, também o é o bispo legítimo de cada diocese. Naquele concílio excomungaram-se todos os chefes cismáticos, e Novato partiu para Roma, onde Novaciano havia se constituído como antipapa, com o objetivo de criar distúrbios na capital do império. Cipriano reconheceu Cornélio, que então ocupava a sé de São Pedro, como o único Papa, e empenhou-se grandemente em apoiá-lo durante todo o cisma, tanto na Itália quanto na África. Com a ajuda de São Dionísio, bispo de Alexandria, conquistou a adesão dos bispos do Oriente a Cornélio e advertiu-os de que sua união com qualquer falso bispo de Roma equivalia a afastar-se da comunhão da Igreja. Em relação a essas perturbações, Cipriano acrescentou ao seu tratado sobre a unidade um capítulo sobre a questão dos apóstatas.
Em várias passagens de seus escritos São Cipriano se queixa de que a paz de que gozou a Igreja enfraqueceu a vigilância e o espírito de alguns cristãos e abriu as portas da Igreja a muitos convertidos que careciam da verdadeira fé, de modo que sobreveio um grande relaxamento e, ao ser posta à prova a virtude dos cristãos na perseguição desencadeada por Décio, muitos não tiveram coragem para enfrentá-la. Esses foram os renegados que ofereceram sacrifícios aos ídolos ou então os libellatici, isto é, aqueles que, sem haver sacrificado, adquiriram mediante grandes somas de dinheiro certificados que declaravam que já haviam oferecido sacrifícios; a esses se chamou relapsos (lapsi) e, por causa deles e do tratamento que lhes deveria ser dado, surgiu uma amarga e extensa controvérsia durante a perseguição de Décio e vários anos depois: de um lado, o cismático Novato pregava uma indulgência excessiva para com os relapsos e, de outro, a severidade de Novaciano se traduziu na heresia de privar a Igreja do poder de absolver e perdoar um apóstata. Foi então que os culpados de algum pecado abominável, além da apostasia, estavam impossibilitados de assistir aos sagrados mistérios sem antes passar por uma severa prova de penitência pública que compreendia quatro graus e se prolongava por vários anos. Somente em ocasiões extraordinárias se concedia uma diminuição daquelas penitências, e também se costumava conceder “indulgências” aos penitentes que recebiam uma bênção ou recomendação de algum mártir a caminho do suplício ou de algum confessor da fé que estivesse na prisão e, mesmo nesses casos, exigia-se um pedido formal do mártir ou do confessor em favor do penitente, pedido este que o bispo e seu clero examinavam antes de dar a ratificação. [b] Nos tempos de São Cipriano, esse costume, adotado na África, degenerou em abuso pelo grande número dos libelli martyrum, porque muitas vezes a solicitação de comutação era concedida em termos muito vagos ou peremptórios e porque eram outorgadas sem discernimento e sem exame prévio.
Cipriano condenou esses abusos com toda a severidade e, embora em aparência pudesse parecer inclinado ao rigorismo, na realidade seguia o meio-termo e, na prática, era considerado equilibrado e indulgente. Para enfrentar a situação que lhe se apresentava, recorreu à prudência e, depois de consultar o clero romano, insistiu em que fossem obedecidas sem discussão as medidas e ordenanças que havia tomado, até que surgisse a oportunidade de estudar a questão em conjunto, entre todos os bispos e sacerdotes da África. A ocasião se apresentou no ano de 251, durante o Concílio de Cartago, já mencionado, onde se decidiu que os libellatici podiam ser readmitidos após um período de penitência mais ou menos longo, conforme o caso, enquanto os sacrificati só poderiam receber a comunhão em caso de morte. Mas no ano seguinte, desencadeou-se a perseguição de Galo e Volusiano, e um novo Concílio dos bispos africanos decretou que “todos os penitentes que manifestassem novamente sua disposição de entrar na Igreja e somar-se às fileiras para ir à luta, combatendo valorosamente pelo nome do Senhor e pela própria salvação, recebessem a paz da Igreja”. O bispo disse que tal medida era necessária e recomendável, “a fim de convocar em forma geral e coletiva os soldados de Cristo no campo de Cristo e, assim, os que verdadeiramente estão ansiosos de tomar as armas nas mãos e lançar-se à luta, que o façam em boa hora. Enquanto gozávamos de tempos pacíficos, havia razões de peso para manter durante mais tempo os penitentes em estado de mortificação, que só se modificaria em caso de enfermidade ou de perigo. Mas agora, os vivos têm tanta necessidade de comunhão como os moribundos a tinham então; do contrário, seria como deixar sem armadura e sem defesa precisamente aqueles que exortamos e animamos a lutar na batalha do Senhor: a esses devemos apoiar e fortalecer com o Sangue e o Corpo de Cristo. Se o objetivo da Eucaristia é dar defesa e segurança aos que dela participam, devemos fortificar aqueles por cuja segurança nos preocupamos, com a armadura do banquete do Senhor. Como poderão ter capacidade de morrer por Cristo, se lhes negamos o Sangue de Cristo? Como os prepararemos para beber o cálice do martírio, se não lhes damos a beber antes o cálice do Senhor?”

Entre os anos de 252 e 254, Cartago foi flagelada por uma terrível epidemia cujas devastações São Pôncio nos deixou uma viva descrição. Naqueles tempos de horror e desolação, São Cipriano reuniu e organizou os cristãos da cidade, falou-lhes severamente sobre seus deveres de misericórdia e caridade e os instruiu para que prodigalizassem seus cuidados não somente aos seus, mas também a seus perseguidores e inimigos. Os fiéis ofereceram seguir fielmente suas diretivas e cumpriram sua palavra. Os serviços dos cristãos foram muito diversos: os ricos contribuíram com quantiosas somas de dinheiro, os pobres deram seu trabalho e atenção pessoal. Os pobres e necessitados, não só durante a peste, mas em todo tempo, foram o principal objeto da preocupação de São Cipriano, como provam suas contínuas recomendações para que não fossem desamparados e as ordenanças que frequentemente dava para lhes fornecer ajuda. Um de seus ditos preferidos era este: “Não deixeis dormir em vossos cofres o que pode ser útil para os pobres. Tudo aquilo de que o homem terá de se desprender necessariamente, cedo ou tarde, é bom que o distribua voluntariamente antes da morte, para que Deus possa recompensá-lo na eternidade”. Para consolo e fortalecimento de seu rebanho durante a epidemia de peste, o santo bispo escreveu seu tratado De Mortalitate.
Se bem que São Cipriano tenha sempre apoiado o Papa São Cornélio, nos últimos anos de sua vida opôs-se com igual energia ao Papa São Estêvão I na questão do batismo conferido por hereges ou cismáticos. Ele e outros bispos africanos se negaram a reconhecer a validade desses batismos. O desacordo é relatado com detalhes no artigo dedicado a São Estêvão I, em 2 de agosto. Apesar de que, no decorrer da disputa, São Cipriano publicou um tratado sobre a virtude da paciência, durante as discussões demonstrou grande paixão e veemência, um excesso que, segundo diz Santo Agostinho, compensou largamente por seu glorioso martírio.
No mês de agosto de 257, foi promulgado o primeiro édito da perseguição de Valeriano para proibir toda assembleia de cristãos e para exigir aos bispos, sacerdotes e diáconos que tomassem parte no culto oficial, sob pena de exílio. No dia 30 do mesmo mês, o bispo de Cartago foi levado diante do procônsul. O relato de seu processo e seus interrogatórios foi tomado de três documentos distintos: um relatório de fontes oficiais sobre seu julgamento no ano de 257, que culminou com uma condenação ao desterro; outro relatório oficial sobre o segundo processo, no ano de 258, do qual saiu condenado à morte; um breve relato sobre sua paixão. O compilador desses documentos acrescenta algumas palavras para vincular as três narrações. Diz o seguinte:
“Quando o imperador Valeriano foi cônsul pela quarta vez e Galieno pela terceira, em 30 de agosto (257 d.C.), o procônsul Paterno disse a Cipriano, o bispo, na câmara das audiências: “Os muito sagrados imperadores Valeriano e Galieno dignaram-se enviar-me cartas nas quais me mandam vigiar para que, de agora em diante, observem estritamente o cerimonial de nossa religião aqueles que não professam o culto dos romanos. Por essa razão, mandei que comparecesses diante de mim. Que me respondes?
Cipriano: Sou cristão e sou bispo. Não conheço outros deuses senão o único e verdadeiro Deus que fez o céu e a terra, o mar e tudo o que neles há. A esse Deus servimos nós, os cristãos; a Ele elevamos nossas orações de dia e de noite, por nós mesmos, por todos os homens e pela salvação dos próprios imperadores.
Paterno: Persistes em manter essas intenções?
Cipriano: Uma boa intenção que reconhece a Deus não pode mudar.
Paterno: Nesse caso, e de acordo com o édito de Valeriano e Galieno, irás para o exílio em Curúbis.
Cipriano: Irei.
Paterno: Os imperadores dignaram-se escrever-me não só a respeito dos bispos, mas também dos sacerdotes. Portanto, desejo saber de ti quem são os sacerdotes que vivem nesta cidade.
Cipriano: Pelas vossas leis e com sabedoria, proibistes que um homem se tornasse delator, de modo que não posso revelar esses nomes. Mas podem ser encontrados em suas respectivas cidades.
Paterno: Desde hoje os buscarei nesta.
Cipriano: Nossa disciplina proíbe que alguém se entregue voluntariamente, e semelhante atitude é contrária a nossos princípios; mas se os buscares, os encontrarás.
Paterno: Eu os encontrarei. Os imperadores proibiram também que se realizem assembleias em qualquer lugar, assim como o acesso aos cemitérios. Se algum deles não tiver obedecido a este saudável decreto, incorreu na pena de morte.
Cipriano: Cumpre o que te foi ordenado.

“Então Paterno, o procônsul, ordenou que o bem-aventurado Cipriano fosse exilado e, quando já havia passado algum tempo no desterro, o procônsul Galério Máximo sucedeu a Aspásio Paterno. O nomeado em primeiro lugar mandou que o santo bispo Cipriano fosse chamado do exílio para que comparecesse diante dele (agosto de 258). Quando Cipriano, o venerável mártir escolhido de Deus, regressou da cidade de Curúbis [c] para onde havia sido exilado de acordo com o decreto do então procônsul Aspásio Paterno, permaneceu vigiado em seus próprios jardins, segundo o mandato dos imperadores. Ali esperava todos os dias que viessem buscá-lo, como lhe havia sido revelado em um sonho. [d] E de repente, enquanto estava ali, durante o consulado de Tusco e Basso, no dia 13 de setembro, chegaram dois oficiais para buscá-lo: um era o chefe dos carcereiros do procônsul Galério Máximo e o outro era marechal da guarda do mesmo procônsul. Colocaram-no entre eles em uma carruagem e o levaram à Vila de Sexto, onde o procônsul se havia retirado para recuperar a saúde. O mesmo ordenou que o julgamento fosse adiado para o dia seguinte e, enquanto isso, levaram o bem-aventurado Cipriano à casa do chefe dos carcereiros como seu hóspede, no bairro chamado de Saturno, entre o templo de Vênus e o templo do Bem-estar público. E até lá chegaram a reunir-se todos os irmãos. Quando o santo Cipriano soube disso, ordenou que todas as jovens fossem protegidas, já que todos os que tinham vindo permaneciam ali, no bairro, diante das portas da casa do oficial. No dia seguinte, 14 de setembro, pela manhã, uma grande multidão se congregou na Vila de Sexto, esperando que se cumprisse o que havia ordenado Galério Máximo. No mesmo dia, este mandou que Cipriano comparecesse diante dele, no tribunal chamado de Sauciolum. Quando chegou, Galério Máximo, o procônsul, disse a Cipriano, o bispo: “És tu Tascio Cipriano?
Cipriano: Sou eu.
Máximo: És o Pai (Papa) desses homens sacrílegos?
Cipriano: Sim.
Máximo: Os muito santos imperadores te ordenam que sacrifiques.
Cipriano: Não sacrificarei.
Máximo: Pensa bem.
Cipriano: Faze o que tens que fazer. Não há lugar para reflexão em um assunto tão claro.
“Galério Máximo consultou seus assessores e depois, de má vontade, ditou a sentença como segue: “Viveste longo tempo no sacrilégio; reuniste em torno de ti muitos cúmplices em associação ilegal; tornaste-te inimigo dos deuses romanos e de sua religião. Nossos muito piedosos e sagrados príncipes, Valeriano e Galieno, Valeriano o Augusto e Galieno o nobilíssimo César, não puderam reconduzir-te à prática de nossos ritos. Portanto, e visto que sabemos que és o autor e o principal organizador de repugnantes crimes, em ti faremos um exemplo para todos aqueles que se uniram a ti em tuas perversidades: teu sangue será a confirmação das leis”. Uma vez ditas estas palavras, leu o decreto em uma tabuinha: “A Tascio Cipriano será dada a morte pela espada”. Cipriano respondeu: “Graças sejam dadas a Deus!”

“Quando foi ditada a sentença, os irmãos ali reunidos disseram: “Que sejamos decapitados com ele!” A multidão seguiu o condenado tumultuosamente até o lugar da execução, um sítio rodeado por árvores às quais alguns subiram para ver melhor. Assim foi conduzido Cipriano até a planície de Sexto. Ali foi-lhe tirado o manto e ele se ajoelhou para orar a Deus. Quando tirou a dalmática [e] e a entregou a seus diáconos, ficou de pé, coberto com suas brancas roupas interiores, esperando o verdugo. Quando este chegou, Cipriano pediu a seus amigos que lhe dessem vinte e cinco peças de ouro. Os fiéis estenderam diante de Cipriano panos e lenços. Ele mesmo vendeou os olhos com suas mãos e, como não pudesse atar as extremidades do pano, Julião, o sacerdote, e Julião, o subdiácono, o fizeram em seu lugar. Assim sofreu o bem-aventurado Cipriano; seu corpo foi deixado em um lugar próximo para satisfazer a curiosidade dos pagãos. Depois, à noite, os cristãos o transportaram, com velas e tochas, entre preces e em procissão triunfal, até o cemitério de Macróbio Candidiano, o procurador, que se encontra no caminho de Mappalia, perto dos tanques. Poucos dias mais tarde, morreu Galério Máximo, o procônsul”.
As cartas de São Cipriano, uma breve nota do De Viris Illustribus de São Jerônimo, a paixão do santo e o esboço biográfico atribuído a seu diácono São Pôncio, são nossas principais fontes de informação. A paixão e a biografia têm sido muito discutidas. No vol. XXXIX do Texte und Untersuchungen, Harnack dedica algumas páginas a Das Leben Cyprianis von Pontius e a descreve como a primeira biografia cristã de quantas existem. Reizenstein, na Sitzungsberichte Fil. e Hist. de Heidelberg (1913), dá um ponto de vista menos favorável e diz que não tem importância como fonte histórica. Delehaye discute o assunto em Les Passions des Martyrs et les genres littéraires (1921). Se Delehaye tem razão, não se pode dizer que as Atas Proconsulares de São Cipriano sejam “um registro único sobre o processo e morte de um mártir com toda a sua autenticidade e pureza”. Por mais dignos de confiança que sejam os documentos, não são cópia fiel das atas oficiais. O mesmo escritor, em Analecta Bollandiana, vol. XXXIX (1921), pp. 314-332, observa a singular confusão que se tem feito entre a história de São Cipriano de Cartago e a lenda fictícia de São Cipriano de Antioquia. Ver também o Acta Sanctorum, set., vol. IV; a obra S. Cyprien de P. Monceaux na série Les Saints; e S. Cecil Cyprian de Fischer (1942). A literatura em torno dos escritos de São Cipriano é muito extensa e muito contraditória. Em relação à conhecida obra do arcebispo Benson St. Cyprian, consultar os artigos do padre J. Chapman em De Unitate Ecclesiae e na Revue Bénédictine de 1902 a 1903. Uma bibliografia mais completa pode ser encontrada no DTC. de Bardenhewer e no Lexikon für Theologie und Kirche, vol. II, pp. 99-102. [2]
Referência:
Butler, Alban. Vida dos Santos, vol. 3, pp. 572-574.
Ibid. pp. 497-498.
Notas:
a. O retiarius era um gladiador armado com uma espada e uma rede (rete), com a qual procurava capturar o oponente para matá-lo.
b. Os períodos de tempo (300 dias, 7 anos, etc.) em que hoje se concedem as indulgências são uma prática que sobrevive desde os tempos em que a disciplina das penitências públicas estava em vigor na Igreja.
c. Curúbis era uma pequena cidade a uns cento e oitenta quilômetros de Cartago, em uma península da costa do mar da Líbia, não longe da Pentápolis. O lugar era agradável e saudável, apesar de se encontrar em terras desérticas, pois a brisa marítima fazia reverdecer os campos e a água era abundante. A São Cipriano acompanhavam no exílio seu diácono São Pôncio e outros. Seu desterro foi aliviado pelas considerações que sempre lhe dispensaram as autoridades.
d. A Cipriano foi ordenado o regresso do desterro em obediência a outro édito que mandava a sentença de morte para bispos, sacerdotes e diáconos (o Papa São Sisto II foi um dos primeiros a sofrer o martírio) e, por esta e outras causas, agravou-se a perseguição.
e. Espécie de túnica que originalmente se usava na Dalmácia. Naquele tempo ainda não era uma vestimenta eclesiástica.


























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