Festa dos Santos Anjos da Guarda e a Vida de São Leodégario, mártir (2 de outubro)
- Sacra Traditio

- 2 de out.
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Anjo é uma palavra grega que significa mensageiro. Os anjos são espíritos puríssimos, individuais mas sem corpo, aos quais Deus deu uma inteligência e um poder maiores do que aos homens. Seu ofício consiste em louvar a Deus, servi-lo como mensageiros e cuidar dos homens.
Os teólogos sustentam unanimemente que Deus designa um anjo como guardião de cada homem, mas tal afirmação nunca foi definida solenemente pela Igreja. Os anjos da guarda nos ajudam a ir para o Céu, defendem-nos do inimigo, ajudam-nos a rezar e nos estimulam à virtude. Isto último o fazem por meio da nossa imaginação e dos nossos sentidos, sem afetar diretamente a nossa vontade, de modo que a nossa cooperação é necessária. O salmista diz: “Deus encarregou seus anjos de cuidarem de ti e de te guiarem em todos os teus caminhos”. Em outro lugar acrescenta: “O anjo do Senhor armará sua tenda junto aos que temem a Deus e os livrará de seus inimigos”. O patriarca Jacó pediu ao bom anjo que abençoasse seus dois netos, Efraim e Manassés: “Que o anjo que me livrou de todos os males, abençoe estes jovens”. E Judite disse: “O anjo do Senhor me acompanhou durante a viagem de ida, durante a minha estada ali e durante a viagem de volta”. Cristo nos exortou a evitar escandalizar os pequenos, porque seus anjos estão diante da presença de Deus e pedirão que castigue aqueles que fizerem mal a seus protegidos. A ideia de que Deus designa um anjo para cuidar de cada um dos homens estava tão difundida no mundo judaico que, quando São Pedro foi libertado milagrosamente da prisão, a primeira coisa que pensaram os discípulos foi que era obra de “seu anjo”.
Desde os primeiros tempos da Igreja, prestou-se honra litúrgica aos anjos. O ofício da Dedicação da Igreja de São Miguel Arcanjo, na Via Salária (29 de setembro), e o mais antigo dos sacramentários romanos, chamado “o Leonino”, aludem indiretamente nas orações ao ofício de guardiães desempenhado pelos anjos. Desde a época de Alcuíno (que morreu no ano 804), existe uma Missa votiva “ad suffragia angelorum postulanda” (para solicitar o auxílio dos anjos), e o mesmo Alcuíno fala duas vezes em sua correspondência dos anjos da guarda. Não é totalmente certo que o costume de celebrar essa Missa seja de origem inglesa, mas é fato que o texto de Alcuíno está incluído no Missal de Leofrico, que data do início do século X. A Missa votiva dos Anjos costumava ser celebrada na segunda-feira, como prova o Missal de Westminster, composto por volta do ano 1375. Na Espanha a tradição diz que também cada uma das cidades tem seu anjo da guarda particular. Assim, por exemplo, um ofício do ano 1411 faz alusão ao anjo da guarda de Valência. Fora da Espanha, Francisco de Estaing, bispo de Rodez, obteve do Papa Leão X uma bula em que o Pontífice aprovava um ofício especial para a comemoração dos Anjos da Guarda no dia 1º de março. Também na Inglaterra estava muito difundida a devoção aos anjos. Heriberto Losinga, bispo de Norwich, que morreu em 1119, falou com grande eloquência sobre o tema. Por outra parte, a conhecida oração que começa “Angele Dei qui custos es mei” (tradicionalmente conhecido em português como “Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador…”) deve-se provavelmente à pena do versificador Reginaldo de Canterbury, que viveu na mesma época. O Papa Paulo V autorizou uma Missa e um ofício especiais, a pedido de Fernando II da Áustria, e concedeu a celebração da Festa dos Santos Anjos em todo o império. Clemente X estendeu-a como Festa de preceito a toda a Igreja do Ocidente em 1670 e fixou como data de celebração o primeiro dia feriado após a Festa São Miguel. [1]
“Cada fiel é ladeado por um anjo como protetor e pastor para conduzi-lo à vida” — São Basílio Magno. [2]

A Santa Igreja instituiu uma festa especial para nos recordar a graça que a infinita misericórdia de Deus nos concedeu ao nomear os santos anjos para a nossa proteção temporal e espiritual. Essa Festa deve nos lembrar de dar graças a Deus por esse grande benefício, e de mostrar nossa gratidão aos Santos Anjos por seu cuidado e solicitude. Para que isso possa ser feito com o devido zelo e devoção, reflita bem sobre as seguintes observações.
O Todo-Poderoso criou um número incontável de espíritos celestiais, imortais por natureza, e concedeu-lhes graças especiais. Sim, um número incontável, pois é dito na Sagrada Escritura: “Pode ser contado o número de suas legiões?” (Jó 25, 3). Por “legiões” entendem-se seus anjos. Em outro local, está escrito: “Milhares e milhares o serviam, dezenas de milhares o assistiam!” (Dn 7, 10).
Esses espíritos celestiais são divididos em três classes, e cada classe em três coros; portanto, consistem em nove coros. O primeiro, e mais elevado, é formado pelos serafins; o segundo, pelos querubins; o terceiro, pelos tronos; o quarto, pelas dominações; o quinto, pelos principados; o sexto, pelas potestades; o sétimo, pelas virtudes; o oitavo, pelos arcanjos; e o nono, pelos anjos. Todos circundam o trono do Altíssimo, louvam constantemente sua Majestade infinita e estão sempre prontos para executar suas ordens; ainda assim, cada um desses coros tem sua função distinta, como nos ensinam os teólogos. Deus atribuiu a cada ser humano um guardião para o proteger, tirado deste nono ou último coro. Por isso são chamados anjos da guarda. Assim ensina a Santa Igreja, e não se pode duvidar que seja verdadeiro este ensinamento, pois está fundamentado nas palavras da Sagrada Escritura.
A cada ser humano é dado um anjo, um príncipe do Céu para proteger sua alma e seu corpo, encorajá-lo na adversidade, consolá-lo na tristeza, fortalecê-lo nas tentações, socorrê-lo nos perigos, impedi-lo de fazer o mal, incitá-lo a fazer o bem e, assim, conduzi-lo ao Céu, se ele for obediente ao seu anjo da guarda. Exatamente como nos tempos antigos, quando foi dado por Deus aos israelitas um anjo específico, a fim de protegê-los e conduzi-los à terra prometida: “Eis que enviarei o meu Anjo, que irá adiante de ti, e te guardará no teu caminho, e te conduzirá ao lugar que tenho preparado” (Ex 23, 20). Portanto, Ele dá a cada homem um anjo para protegê-lo ao longo do caminho desta vida e conduzi-lo felizmente ao Céu — do qual era símbolo a terra prometida.

Detenha-se aqui, caro leitor, e considere a grandeza desta benevolência de Deus para conosco. Desde que o mundo é mundo, jamais ouvimos falar de um monarca que desse a um dos seus nobres cortesãos a ordem de permanecer continuamente ao lado de um camponês comum, ou de outro homem de baixa condição, para cuidar dele e conduzi-lo em segurança a uma terra distante. Mas nossa santa fé nos ensina que aquilo de que nunca se ouviu falar a respeito de um rei temporal foi feito para nós pelo grande e misericordioso Deus, Rei do Céu e da terra. Ele deu a cada um, até à mais miserável das criaturas, um dos príncipes do Céu, para cuidar deles, acompanhá-los constantemente e abrir-lhes as portas do mundo eterno. Que graça inestimável! Que bondade infinita! Avalie, meu caro leitor, se não tem todos os motivos para dar graças ao Altíssimo, que mostrou uma bondade tão infinita em relação a você e, portanto, está preocupado com sua salvação. Renda-lhe graças, hoje, de um modo especial, pois foi para isso que se instituiu a festa que celebramos. Reflita, além disso, em como nos veem os anjos, a quem fomos confiados por Deus.
Eles estão perfeitamente satisfeitos com aqueles que foram colocados sob sua responsabilidade, sejam eles pobres ou ricos, de posição nobre ou humilde. Desempenham sua missão com todo o amor e solicitude. “Eles nos amam”, diz São Bernardo, “porque Cristo nos amou”. Provam seu amor por obras, afastando de nós muitos perigos do corpo e da alma e protegendo-nos milagrosamente. Eles nos impedem de fazer o mal, animam-nos a fazer o bem e fortalecem-nos para que resistamos às tentações de Satanás. Quando somos réus de pecado, encorajam-nos a fazer penitência, de modo a aplacar a ira divina e afastar de nós o merecido castigo; alegram-se quando fazemos penitência e convertemos nosso coração a Deus; oferecem nossas orações, jejuns e outras boas obras ao Todo-Poderoso e rezam por nós. Eles não nos abandonam, quer estejamos dormindo quer estejamos acordados, quer estejamos bem de saúde quer estejamos doentes; auxiliam-nos durante a vida e na hora da morte, e acompanham nossas almas até o tribunal do Altíssimo. A Sagrada Escritura está cheia de exemplos que provam tudo isto, e muitos outros são encontrados na história da Igreja e nas vidas dos santos.
Um anjo salvou o faminto Ismael do perigo de morte. Um anjo preservou a vida do obediente Isaac, detendo a espada desembainhada de seu pai. Um anjo conduziu o piedoso Lot para fora de Sodoma, impedindo-o de ser queimado com o resto de seus habitantes. Um anjo protegeu os israelitas de todos os seus inimigos. Um anjo alimentou o profeta Elias no deserto e deu-lhe forças para prosseguir em sua longa viagem. Um anjo livrou o piedoso Rei Ezequias e a cidade de Jerusalém de muitos milhares de inimigos, matando todos numa só noite. Um anjo preservou ileso o profeta Daniel no meio dos leões, e levou o profeta Habacuc para alimentá-lo. Um anjo conservou ilesos os três companheiros do mesmo santo profeta na fornalha da Babilônia. Um anjo acompanhou o jovem Tobias como guia durante sua viagem, e instruiu-o quanto ao modo como deveria desposar a casta Sara, para evitar que o Maligno o prejudicasse, como havia sido feito a outros sete, mortos pelo diabo. Além de ajudá-lo de várias outras maneiras, salvou-o também do perigo de ser devorado por um peixe monstruoso. O mesmo anjo ofereceu ao Todo-Poderoso as orações do velho Tobias, restituindo-lhe depois a visão. Um anjo protegeu a casta Judite de grandes perigos da alma e do corpo. Um anjo ensinou ao centurião Cornélio como poderia salvar sua alma. Um anjo libertou São Pedro da prisão e do risco de morte. Um anjo preservou a vida de São Paulo e de outros que estavam com ele numa embarcação.

Muitos outros fatos semelhantes se encontram na Sagrada Escritura e nas vidas dos santos. E o que são todos esses fatos senão provas do amor e da solicitude dos anjos por nós? Reflita sobre sua vida pregressa e veja se você mesmo não recebeu provas suficientes da devoção e do cuidado de seu santo anjo da guarda. O fato de não ter perdido a vida em muitos perigos que o cercavam; o fato de ter sido preservado de muitos pecados; o fato de não ter morrido em pecado, e ter ganhado tempo para fazer penitência; o fato de ter recebido do Todo-Poderoso tantos benefícios espirituais e temporais: tudo isso e muitos outros favores devem ser atribuídos à poderosa proteção, amor e cuidado do seu santo anjo da guarda, bem como à sua intercessão, por você, diante de Deus.
Face a tantas bênçãos, tanta vigilância, tanta devoção e indescritível solicitude, é razoável concluir que você deve ser particularmente grato ao seu santo anjo da guarda. É claro que, em primeiro lugar, você deve agradecer ao Onipotente, que o colocou sob a proteção de um príncipe do Céu tão nobre e tão bondoso. Mas São Bernardo também nos exorta a agradecer àqueles que, obedecendo à vontade de Deus, velam por nós com tanto amor e ajudam-nos em todas as nossas necessidades. “Sejamos cheios de devoção e gratidão para com tão poderosos protetores”, diz ele, “retribuamos o amor com amor e esforcemo-nos por honrá-los de todo o coração”.
Quando Deus prometeu aos israelitas enviar um anjo a fim de protegê-los em sua viagem e conduzi-los à terra prometida, acrescentou: “Fica de sobreaviso em sua presença, e ouve o que ele te diz. Não lhe resistas, pois ele não perdoaria tua falta, pois o meu nome está nele” (Ex 23, 21); ou seja, ele é um representante de Deus. Tais palavras indicam que você deve provar com obras a sua gratidão. “Honra-o”; esta é a primeira coisa que Deus exige. “Honra-o”, porque ele é um anjo de Deus, seu representante, um grande príncipe do Céu. “Honra-o”, porque Deus o elevou a uma grande glória; ele vê a face do Altíssimo e muitas vezes age em seu nome. “Honra-o”. Você honra o seu anjo da guarda se o invoca com confiança em todas as suas preocupações, especialmente quando sua alma ou seu corpo estão em perigo, nas grandes tentações, na vida e na morte. Tão logo Tobias percebeu o risco de ser devorado por um peixe monstruoso, chamou seu fiel guardião, que era um anjo: “Senhor, ele lança-se sobre mim!” (Tb 6, 3). Pediu ajuda e recebeu-a instantaneamente.

E você, por que não haveria de recorrer, com a mesma confiança, ao seu anjo da guarda, sobretudo quando o monstro infernal, o leão que ruge, como o chama a Sagrada Escritura, o demônio, o Maligno, o tenta a pecar, e assim se esforça por devorá-lo? “Sempre que uma grande dor ou tentação aproximar-se de ti”, escreve São Bernardo, “invoca teu guia e protetor, e dize: ‘Senhor, ajuda-me, senão haverei de me perder!’”
“Obedece à sua voz”, diz o Senhor. Ele fala à sua alma por movimentos interiores ou inspirações. Por exemplo, se estiver em perigo de pecar, ele lhe diz: “Afasta-te do mal, evita o pecado”. Se estiver cercado de más ocasiões, ele lhe diz: “Retira-te daqui! Foge depressa.” Se tiver cometido um pecado, ele o exorta: “Faz penitência! Volta sem demora para teu Deus!” Do mesmo modo, ele o admoesta interiormente a praticar boas obras, a ser mais zeloso no serviço de Deus, mais solícito por sua salvação. Obedeça a esta voz, a este apelo de seu santo anjo da guarda. Não fazê-lo, é sinal de que o despreza, e isso é contrário à ordem de Deus, que não o deixará impune, pois de algum modo é uma ofensa à sua Majestade. Obedeça sempre à voz de seu anjo da guarda e não o ofenda com a desobediência, pois, caso contrário, não será digno de sua proteção.
Para concluir, apresento-lhe uma admoestação memorável de São Bernardo. Ele o exorta a recordar constantemente a presença de seu anjo e a honrá-lo devidamente em todos os lugares. Porém, diz ele, a principal forma de fazer isso é evitando o pecado, pois pecar na presença dele contraria todo o respeito que lhe é devido. Eis as palavras do santo Doutor: “Em todos os lugares, manifesta ao teu anjo a honra que lhe é devida, e não ouses cometer em sua presença o que não ousarias fazer se eu estivesse por perto.” Em outro lugar: “Caminhemos na presença dos anjos de modo a não ofender-lhes a visão”. E ainda: “Devemos guardar-nos para não ofendê-los, e por isso devemos praticar assiduamente todos os exercícios que sabemos serem agradáveis a eles, como a temperança, a castidade, a pobreza voluntária, as orações devotas etc.” Grave essas palavras profundamente em seu coração, pois elas contêm o melhor conselho quanto aos meios de honrar o seu santo anjo da guarda, e garantir a si mesmo sua amorosa e poderosa proteção durante a vida e na hora da morte. Evite tudo o que sabe que lhe é desagradável, e pratique, com grande zelo, tudo o que estiver convencido de que lhe será agradável. [3]
O excelente artigo do Pe. J. Duhr no Dictionnaire de spiritualité, vol. 1 (1933), cc. 580-625, trata a fundo a evolução histórica da devoção ao anjo da guarda. Sobre a devoção aos anjos em geral, veja-se DTC., vol. 1, cc. 1222-1248. Quanto ao aspecto litúrgico, cf. Kellner, Heortology (1908), pp. 328-332. No que se refere à representação dos anjos na antiguidade e na arte, cf. DAC., vol. 1, cc. 2080-2161; e Künstle, Ikonographie, vol. 1, pp. 239-264.

São Leodégario nasceu por volta do ano 616. Seus pais o enviaram à corte do rei Clotário II, que o confiou aos cuidados de seu tio Didão, bispo de Poitiers, o qual designou um sacerdote para educá-lo. Leodégario progrediu rapidamente no saber e ainda mais depressa na ciência dos santos. Por seus méritos e habilidades, seu tio o nomeou arquidiácono da diocese quando ele tinha apenas vinte anos. Depois de receber o sacerdócio, Leodégario foi obrigado a assumir o governo da abadia de Saint-Maxence, cargo que desempenhou por seis anos. Quando tinha cerca de trinta e cinco anos foi nomeado abade. Seu biógrafo o descreve como um homem que inspirava mais temor que afeto. “Como possuía conhecimentos de direito civil, era severo em seu julgamento dos leigos. Por outra parte, seu conhecimento do direito canônico fazia dele um excelente mestre do clero. Os prazeres da carne não o haviam enfraquecido, de modo que tratava com suma severidade os pecadores.” Diz-se que introduziu a Regra de São Bento em seu mosteiro que, por sinal, necessitava de sua mão firme de reformador.
A regente, Santa Batilde, chamou São Leodégario à corte e, no ano de 663, o nomeou bispo de Autun. Essa sé vacava havia dois anos, pois a diocese estava muito dividida e os chefes de um partido matavam os do outro para tomar o governo. A nomeação de São Leodégario aplacou as desavenças, e os partidos se reconciliaram. O santo se consagrou a socorrer os pobres, instruir o clero, pregar frequentemente ao povo, decorar as igrejas e fortificar as cidades. Num sínodo diocesano pôs em vigor muitos cânones para a reforma dos costumes do povo e dos mosteiros. Como dizia, se os monges fossem como deviam ser, suas orações preservariam o mundo das calamidades públicas.
O rei Clotário III morreu no ano 673, quando São Leodégario já levava dez anos como bispo. Assim que recebeu a notícia, foi à corte e ofereceu seu apoio a Quilderico, que conseguiu triunfar das intrigas de Ebroíno, mordomo do palácio da Neustria. Ebroíno foi exilado em Luxeuil. Quilderico II governou com acerto enquanto soube ouvir os conselhos de São Leodégario. A influência do santo no início do reinado de Quilderico era tão grande, que alguns documentos o consideram como mordomo do palácio. Mas o jovem monarca, de caráter muito violento, acabou por se entregar aos impulsos de sua vontade e contraiu matrimônio com sua prima, sem obter a dispensa necessária. São Leodégario o advertiu em vão. Alguns nobres aproveitaram a ocasião para pôr em dúvida a fidelidade do santo durante a Páscoa do ano 675, quando Quilderico se encontrava em Autun. A duras penas São Leodégario conseguiu escapar vivo da prisão e depois foi exilado em Luxeuil, onde ainda estava seu rival Ebroíno. Mas um nobre chamado Bodilo, a quem Quilderico mandara açoitar publicamente, assassinou o monarca, sucedido então por Teodorico III. São Leodégario pôde então voltar à sua sé e foi recebido com grande júbilo em Autun. Ebroíno também voltou do exílio de Luxeuil e marchou para a Borgonha. Ali reuniu um exército e atacou São Leodégario em Autun. Em vez de fugir, este organizou uma procissão com as relíquias dos santos ao redor das muralhas da cidade e se prostrou diante de cada uma das portas para rogar a Deus que protegesse o povo, mostrando-se pronto a morrer por ele. Os habitantes de Autun defenderam valentemente a cidade. Mas, após alguns dias, São Leodégario lhes disse: “Não continueis combatendo. O que o inimigo quer é a minha cabeça. Enviemos alguns de nossos irmãos para saber em que condições estão os contrários.” O duque da Champanha, Waimero, respondeu aos enviados que a única condição era entregarem o bispo. Então Leodégario saiu valentemente da cidade e entregou-se aos atacantes. Imediatamente lhe arrancaram os olhos. O santo suportou a tortura sem uma queixa e não permitiu que lhe atassem as mãos. Waimero o levou consigo à Champanha. Ali lhe devolveu o dinheiro que havia roubado durante o saque da igreja de Autun, e São Leodégario o enviou de volta àquela cidade para que fosse distribuído entre os pobres.

Ebroíno tornou-se o senhor absoluto da Neustria e da Borgonha. Sob o pretexto de vingar a morte do rei Quilderico, acusou São Leodégario e seu irmão Gerino de haver participado da conspiração. Gerino foi apedrejado na presença de São Leodégario. O Martirológio Romano celebra hoje a Festa deste mártir. Ebroíno não podia condenar São Leodégario antes que fosse deposto por um sínodo, mas aproveitou a oportunidade para tratá-lo da forma mais bárbara, pois mandou cortar-lhe a língua e os lábios. Depois o confiou aos cuidados do conde Waring, que o encerrou no mosteiro de Fécamp, na Normandia. Ali São Leodégario curou milagrosamente e recuperou a fala. Após o assassinato de seu irmão Gerino, havia escrito uma carta a sua mãe, que era religiosa em Soissons, para felicitar Sigradis por ter abandonado o mundo, e ao mesmo tempo consolava-a pela morte de Gerino, dizendo-lhe que o que era motivo de alegria para os anjos não podia ser motivo de dor para eles. Igualmente a exortava ao valor e à constância, assim como ao perdão cristão dos inimigos.
Dois anos mais tarde, Ebroíno mandou chamar São Leodégario a Marly, onde havia reunido alguns bispos para que o depusessem. Por mais que os juízes quisessem arrancar do santo a confissão de sua participação no assassinato de Quilderico, ele se negou a admiti-lo. Os juízes rasgaram então suas vestes como símbolo de deposição, e São Leodégario foi entregue ao conde Crodoberto para que executasse a sentença de morte. Para evitar que o povo considerasse o bispo como mártir, Ebroíno mandou lançar secretamente o cadáver em um poço. Crodoberto não quis manchar as mãos com o sangue de uma vítima inocente e confiou a execução a quatro de seus homens. Estes conduziram o santo a uma floresta; três deles lhe pediram ali perdão de joelhos e Leodégario ajoelhou-se para orar por eles. Quando manifestou que estava pronto para morrer, o quarto dos homens lhe cortou a cabeça. Apesar das ordens de Ebroíno, a esposa de Crodoberto sepultou o cadáver em uma pequena capela de Sarcing, na Artois. Três anos depois, as relíquias foram trasladadas ao mosteiro de Saint-Maxence em Poitiers. A luta entre São Leodégario e Ebroíno é um episódio famoso na história merovíngia. Nem todos os homens de bem estavam de seu lado; alguns deles, como São Owen, eram partidários de Ebroíno. Naquela época, era inevitável que os bispos tomassem parte ativa na política e, ainda que o Martirológio Romano diga que São Leodégario (o “Beato” Leodégario) sofreu “pela verdade”, não está muito claro por que se lhe venera como mártir.

Na Acta Sanctorum (outubro, vol. 1, publicado em 1765), o Pe. C. de Bye consagra mais de cem páginas in-folio a São Leodégario. Esse autor publica duas biografias antigas; ainda que não concordem em todos os detalhes, as considera como obras de contemporâneos do santo. A tarefa de resolver mais ou menos satisfatoriamente o problema histórico das convergências e divergências dessas duas biografias estava reservada a B. Krusch (Neues Archiv, vol. XVI, 1890, pp. 565-596). Krusch sustenta que nenhum dos dois autores era contemporâneo de São Leodégario, mas que havia uma terceira biografia (da qual se conserva um fragmento importante em um manuscrito de Paris, Latin 17002), escrita uns dez anos depois da morte de Leodégario, por um monge de Saint-Symphorien interessado em reivindicar a política do sucessor do santo na sé de Autun. As biografias publicadas pelos bolandistas foram escritas uns setenta anos depois, sobre a base da primeira biografia, e não carecem de importância histórica. Krusch (MG., Scriptores Merov., vol. V, pp. 249-362) reconstituiu o texto da biografia original tal como o imaginava. Acrescentemos que a carta de Leodégario a sua mãe é indubitavelmente um documento autêntico, ao passo que o testamento que se lhe atribui se presta a muitas objeções. Veja-se Analecta Bollandiana, vol. XI (1890), pp. 104-110 e Leclercq, em DCA., vol. VIII, cc. 2460-2492. A Histoire de S. Léger, de Pitra (1890), já está ultrapassada, embora em sua época tenha revelado alguns novos textos. A biografia escrita pelo Pe. Camerlinck na coleção Les Saints tende ao tom de panegírico e não é muito crítica; contudo, constitui um relato aceitável dessa tragédia histórica. Como provam os calendários, o culto de Leodégario na Inglaterra é muito antigo; sua festa costumava ser celebrada em 2 ou 3 de outubro. [4]
Referência:
Butler, Alban. Vida dos Santos, vol. 4, pp. 9-10.
São Basílio Magno, Ad Eunomium, 3, 1 (PG 29, 656B).
Lives of the saints: compiled from authentic sources with a practical instruction on the life of each saint, for every day in the year, v. 2. New York: P. O’Shea, 1876, p. 278ss. Artigo "Honre e imite o seu anjo da guarda!."
Butler, Alban. Vida dos Santos, vol. 4, pp. 11-13.


























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