Vida do Beato Carlos de Blois e a Festa de São Miguel Arcanjo (29 de setembro)
- Sacra Traditio

- 29 de set.
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Indiscutivelmente, na literatura apócrifa que tanto abundou na Palestina e nas comunidades judaicas da Diáspora, antes e depois da vinda de Jesus Cristo, o Arcanjo Miguel (Michael, que significa: Quem como Deus?) ocupa uma boa parte. O ponto de partida dessa literatura encontra-se nas Escrituras autênticas, visto que nos capítulos dez e doze do Livro de Daniel, fala-se do arcanjo como “um dos grandes príncipes da milícia celestial, o protetor especial de Israel, e se faz alusão aos tempos em que Miguel ressurgirá como o grande príncipe que se levantará pelos filhos de teu povo” (Daniel 12,1). No Livro de Enoque, considerado o mais importante dos apócrifos do Antigo Testamento, menciona-se Miguel repetidas vezes como “o grande capitão” ou o “primeiro capitão” que “se estabelecerá entre a melhor parte da humanidade”, isto é, entre a raça eleita, herdeira da promessa. É misericordioso e deverá explicar o mistério que envolve o temido juízo do Onipotente. Diz-se que o próprio Miguel conduziu Enoque à presença divina, mas também se associa com os outros arcanjos, Gabriel, Rafael e Fanuel, na expulsão das potestades do mal da terra para lançá-las em um abismo de fogo. O aspecto misericordioso do chefe dos arcanjos se manifesta particularmente no Testamento dos Doze Patriarcas e na Ascensão de Isaías (ano 90 d.C.?). Neste último livro lemos que “o grande anjo Miguel intercede sempre pela raça humana”, mas no mesmo livro se apresenta também como aquele que leva os registros dos feitos de todos os homens nos livros do Céu.
Já na época do Novo Testamento, precisamente no Apocalipse de São João (12,7-9), escreveu-se que “houve um grande combate no Céu. Miguel e seus anjos lutaram contra o dragão, e o dragão e seus anjos lutaram contra ele; mas estes não prevaleceram, nem se encontrou mais lugar para eles no céu. E foi lançado fora o grande dragão, a antiga serpente, chamada o diabo e Satanás, que seduz o mundo inteiro; foi lançado na terra, e seus anjos foram expulsos com ele”. Mas resulta ainda mais significativo, na estreita vinculação de um culto a São Miguel e as tradições judaicas, a menção de seu nome na Epístola de São Judas (v. 9): “Quando Miguel, o arcanjo, disputava com o diabo a posse do corpo de Moisés, não recorreu a muitos discursos e apenas disse: O Senhor te repreenda”.

Não se sabe se esta frase é uma citação direta do escrito apócrifo conhecido como A Assunção de Moisés, porque já não possuímos o texto da última parte dessa obra, mas Orígenes afirma expressamente que se trata de uma citação e menciona o livro de onde foi tomada. A história conta que Moisés morreu e, então, “Samael” (isto é, Satanás) reclamou o corpo para si, com base no fato de que Moisés era um assassino, pois tirara a vida de inúmeros egípcios. Essa blasfêmia provocou a cólera de Miguel que, entretanto, se conteve e apenas disse a Satanás: “Deus te rejeita a ti, difamador (diabole)”. Parece que A Assunção de Moisés dava preeminência à parte desempenhada por Miguel no enterro de Moisés, e sabe-se que alguns dos Padres que participaram do Concílio de Niceia, no ano 325, se referiram a esse livro. É possível que sua origem seja anterior à vinda de Cristo. Na obra O Pastor de Hermas, que data da primeira parte do século II d.C., encontramos uma ilustração referente à veneração que tinham por São Miguel aqueles que, sem dúvida, eram cristãos. Na oitava “semelhança” pode-se ver a alegoria dos ramos cortados do grande salgueiro para serem plantados junto à água; alguns dos ramos brotam e florescem vigorosamente, enquanto outros murcham e secam. Um anjo de majestoso aspecto distribui os prêmios quando aqueles ramos se apresentam ao seu exame e emite o seu juízo. Na legenda que figura ao pé da ilustração, explica-se que aquele “é o glorioso Arcanjo Miguel, que tem autoridade sobre os povos e os governa; porque é ele quem ofereceu a Lei, a enraizou no coração dos crentes e, consequentemente, vigia e administra àqueles a quem deu a Lei para saber se a cumprem”.
O Pastor de Hermas foi tratado por alguns dos primeiros Padres como se o livro fizesse parte do cânon das Escrituras, mas aparentemente nunca chegou a ter tanta difusão como o extravagante escrito apócrifo de origem judaica, conhecido como O Testamento de Abraão, que não deve ser muito posterior ao primeiro. Em todo esse relato, o Arcanjo Miguel é o personagem principal. Desempenha a difícil tarefa de convencer Abraão a aceitar com resignação a necessidade de morrer. Ao leitor se apresenta Miguel como o capitão-mor das legiões de Deus, o organizador de todas as relações divinas com a terra, aquele que intercede diante de Deus com tanto poder que, à sua palavra, podem ser resgatadas até mesmo as almas no inferno. Temos, por exemplo, passagens como esta:

E Abraão disse ao grande capitão (Miguel): “Eu te suplico, ó arcanjo, atende meus rogos e apelemos ao Senhor para suscitar Sua piedade e que conceda Sua misericórdia às almas dos pecadores, aqueles a quem outrora, em minha cólera, amaldiçoei e destruí, aqueles que a terra tragou, aqueles que as feras despedaçaram, aqueles que o fogo consumiu ao conjuro de minha palavra. Agora sei que pequei diante do Senhor nosso Deus. Vamos, então, Miguel, grande capitão das altas legiões, vamos clamar a Deus com lágrimas nos olhos para que Se digne perdoar meus pecados”. O grande capitão o escutou, e fizeram uma súplica a Deus e, depois de haver clamado por longo tempo, desceu do céu uma voz que dizia: “Abraão, Abraão! Eu escutei tua voz e tua oração e eu te perdoo teu pecado. Aqueles que pensas que destruí, chamei-os de volta à vida por obra de minha excelsa bondade, pois, por algum tempo e após meu juízo, lhes paguei com a mesma moeda; e aqueles que destruo enquanto vivem sobre a terra, não os resgato na morte”. [1]
Aparições históricas de São Miguel
Comecemos pela famosa aparição do arcanjo no Monte Gargano, na Itália. A Legenda Áurea narra assim a história:
As aparições desse anjo são numerosas. A primeira aconteceu no monte Gargano, na Apúlia, montanha situada perto da cidade de Siponto. No ano do Senhor de 390 havia na cidade de Siponto um homem que segundo alguns autores chamava-se Gargano, nome tirado da montanha ou que dera o nome à montanha. Ele possuía um imenso rebanho de ovelhas e de bois, e um dia em que esses animais pastavam na encosta do monte um touro afastou-se dos outros para subir ao cume e não retornou com o rebanho. O proprietário reuniu grande número de serviçais a fim de procurá-lo e por fim encontrou-o no alto da montanha, na entrada de uma caverna. Irritado porque o touro vagava assim sozinho, ao acaso, lançou imediatamente contra ele uma flecha envenenada, mas no mesmo instante a flecha, como se tivesse sido empurrada pelo vento, voltou-se e atingiu quem a arremessara. Os habitantes da cidade, perturbados, foram procurar o bispo e pediram seu conselho sobre uma coisa tão estranha. Ele ordenou três dias de jejum e disse que se devia pedir a explicação daquilo a Deus. Depois disso São Miguel apareceu ao bispo, dizendo: “Saiba que aquele homem foi atingido por seu dardo por minha vontade. Eu sou o arcanjo Miguel, e quis mostrar que na Terra habito este lugar e sou o inspetor e guardião dele”. Então o bispo e todos os cidadãos foram em procissão àquele local, e sem ousarem entrar ficaram rezando diante da entrada. [2]
Verdade ou não? Nenhum católico é obrigado a acreditar nesse relato com todos os detalhes, mas a verdade é que o Santuario di San Michele Arcangelo existe, é o mais antigo do Ocidente dedicado ao príncipe das milícias celestes, e até 1962 essa aparição era (pois João XXIII removeu) recordada todos os anos pela Igreja no dia 8 de maio. O nome da Festa era simplesmente In Apparitione S. Michaëlis Archangeli. No norte da Europa, o Mont-Saint-Michel (Monte São Miguel, em francês) ocupa o mesmo lugar que o Monte Gargano na Itália, e lá a Festa da aparição de São Miguel é celebrada no dia 16 de outubro.

Outra aparição muito célebre do arcanjo se deu em Roma, no tempo de São Gregório Magno (final do século VI, portanto), quando a Cidade Eterna era devastada pela peste bubônica. Durante uma procissão pela salvação do povo, o Papa teria visto São Miguel sobre o lugar antigamente chamado “Mausoléu de Adriano”, limpando uma espada ensanguentada e colocando-a de volta na bainha. O santo viu nisso um sinal de que Deus tinha atendido às preces do povo e a peste chegara ao fim. Por isso, mandou que se construísse ali uma igreja em honra ao Sant’Angelo — nome que o belo castelo conserva até hoje, na margem direita do rio Tibre, bem perto da Cidade do Vaticano.
Foi também em Roma que nasceu, em 1886, a oração mais conhecida que temos a São Miguel Arcanjo — “São Miguel Arcanjo, defendei-nos no combate, sede nosso refúgio contra as maldades e ciladas do demônio…”. Um cardeal da Santa Igreja se certificou, com ninguém menos que o secretário pessoal do Papa Leão XIII, de que este “realmente teve uma visão dos espíritos infernais, que se reuniam sobre a Cidade Eterna, e foi desta experiência… que veio a oração que ele queria em toda a Igreja”. [3]

A oração a São Miguel Arcanjo, composta pelo Papa Leão XIII há mais de um século, é profética (como veremos). Trata-se de uma prece profundamente significativa e até mesmo controversa, especialmente diante da crise atual em que se encontra a verdadeira Igreja Católica. Antigamente, esta oração era recitada ao final da Missa, até ser posteriormente retirada. No dia 25 de setembro de 1888, após celebrar a Missa, Leão XIII teve um colapso súbito, a ponto de os presentes pensarem que havia falecido. Ao recobrar os sentidos, o Papa relatou ter ouvido uma terrível conversação que lhe chegara do sacrário. Eram duas vozes distintas, que ele identificou com clareza como sendo a de Cristo e a de Satanás.
Um relato de 1947 do Padre Domenico Pechenino (que teria ouvido uma história parecida de alguém que presenciara os fatos) traz ainda mais detalhes de como a referida oração nasceu:
[Leão XIII] havia celebrado a Santa Missa e estava assistindo a uma outra em ação de graças, como era seu costume. A certa altura, ele foi visto levantando energicamente a cabeça, depois fixou o olhar, observando fixamente alguma coisa acima da cabeça do celebrante. Ele olhou firme, sem piscar, mas com uma sensação de terror e admiração, mudando a cor do rosto. Algo de estranho e grandioso acontecia nele… Finalmente, como permanecendo em si mesmo e dando um leve mas enérgico golpe com a mão, ele se levantou. Foi visto então indo em direção a seu escritório particular. Os membros da família [familiari] foram atrás dele com preocupação e ansiedade. “Santo Padre!”, gritaram com veemência. “Não está se sentindo bem? Precisa de algo?” — “Nada, nada!”, respondeu. Trancou então a porta. Depois de meia hora mandou chamar o secretário da Sagrada Congregação dos Ritos e, entregando-lhe uma folha, ordenou que fosse impressa e enviada para todos os Ordinários do mundo. O que havia na folha? A oração que recitamos no final da Missa com o povo. [4]
Na visão, o demônio se vangloriava de que poderia destruir a Igreja, caso lhe fosse concedido um período de 75 anos (em alguns relatos, 100 anos) para executar o seu plano. Além disso, pediu autorização para exercer um poder mais amplo sobre os homens que se entregassem ao seu serviço. Às exigências do inimigo, o Senhor respondeu: “Concedo-te o tempo e a autoridade.”
Oração a São Miguel Arcanjo:
“Ó glorioso príncipe da milícia celeste, São Miguel Arcanjo, defendei-nos no combate e na terrível luta contra os principados e as potestades, contra os dominadores deste mundo de trevas, contra os espíritos malignos espalhados pelos ares (Ef. 6)! Vinde em auxílio dos homens os quais Deus criou imortais, feitos a sua imagem e semelhança, e resgatou por grande preço da tirania do demónio (Sab. 2; I Cor. 6).
Combatei neste dia, com o exército dos santos anjos, a batalha do Senhor como noutro tempo combateste contra Lúcifer, chefe dos orgulhosos, e contra os anjos apóstatas que foram impotentes em resistir-te e para quem nunca mais haverá lugar no céu.
Sim, esse grande dragão, essa antiga serpente que se chama demônio e Satanás, que seduz o mundo inteiro, foi precipitado com os seus anjos ao fundo do abismo (Apoc. 12). Mas é aqui que esse antigo inimigo, este antigo homicida levantou ferozmente a cabeça. Disfarçado de anjo de luz e seguido por toda a multidão de espíritos malignos, invade o mundo inteiro para apoderar-se dele e desterrar o nome de Deus e do seu Cristo, para afundar, matar e entregar à perdição eterna às almas destinadas à coroa de glória eterna. Sobre os homens de espírito perverso e de coração corrupto, este dragão malvado derrama também, como uma torrente de lama impura, o veneno de sua malícia infernal, o espírito de mentira, de impiedade, de blasfémia e o sopro envenenado da imundice, dos vícios e de todas as abominações.
Os inimigos cheios de astúcia têm acumulado de opróbrios e amarguras a Igreja, esposa do Cordeiro imaculado, e lhe dado a beber absinto; sobre seus bens mais sagrados impõem suas mãos criminosas para a realização de todos os seus ímpios desígnios. Lá, no lugar sagrado onde está instituída a sede de São Pedro e a Cátedra da Verdade para iluminar os povos, foi instalado o trono da abominação de sua impiedade, com o desígnio iníquo de ferir o Pastor e dispersar as ovelhas.
Nós te suplicamos, ó príncipe invencível, ajude o povo de Deus e concede-lhe a vitória contra os ataques destes espíritos dos réprobos. Este povo te venera como seu protetor e padroeiro, e a Igreja se gloria de tê-lo como defensor contra os poderes malignos do inferno. A ti, Deus confiou a missão de conduzir as almas para a felicidade celeste. Roga, portanto, ao Deus da paz que submeta Satanás aos nossos pés, tão derrotado e subjugado, que nunca mais possa impor a escravidão aos homens, nem prejudicar a Igreja! Apresenta as nossas orações à vista do Todo-Poderoso para que as misericórdias do Senhor nos alcancem o quanto antes. Submeta o dragão, a antiga serpente, que é o diabo e Satanás, e o precipite acorrentado no abismo para que não mais possa seduzir as nações (Apoc. 20). Amém.
Desde já confiados à vossa assistência e proteção, com a sagrada autoridade da Santa mãe Igreja, e em nome de Jesus Cristo, Deus e Senhor nosso, empreendemos com fé e segurança repelir aos ataques da astúcia diabólica.
V. Eis a Cruz do Senhor, fujam potências inimigas.
R. Venceu o Leão da tribo de Judá, a estirpe de Davi.
V. Que as tuas misericórdias, ó Senhor, se realizem sobre nós.
R. Assim como esperamos em vós.
V. Senhor, escutai a minha oração.
R. e que o meu clamor chegue até ti.
Oremos. Ó Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, nós invocamos vosso Santo Nome e imploramos insistentemente a Vossa clemência para que, pela intercessão da Imaculada sempre Virgem Maria, nossa Mãe, e do glorioso São Miguel Arcanjo, de São José, esposo da mesma Santíssima Virgem, dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo e de todos os santos, dignai-vos proteger contra Satanás e contra todos os espíritos malignos que vagueiam pela terra para destruir a humanidade e para a perdição das almas. Amém.” [5]

Este santo, pertencente a uma das famílias reais da França e que teve a desgraça de passar nove anos prisioneiro na Torre de Londres, veio ao mundo em Blois, no ano de 1320; seu pai era Guy de Châtillon, conde de Blois, e sua mãe, Margarida, era irmã de Filipe VI, rei da França. Desde a infância, Carlos demonstrou que possuía grandes virtudes naturais, uma coragem à toda prova e que estava maravilhosamente dotado para destacar-se na alta dignidade em que havia nascido. Em 1337, casou-se com Joana da Bretanha e, por esse matrimônio, obteve para si o ducado da Bretanha. Mas esse título lhe foi disputado por João de Montfort e, como era costume naqueles tempos, a querela converteu-se em uma guerra feudal que se prolongou durante toda a existência de Carlos. Este fez tudo o que esteve ao seu alcance para restabelecer a concórdia, sobretudo para aliviar o peso dos impostos de guerra que recaía sobre seus súditos, e afirma-se que chegou até mesmo a propor a Montfort que pusessem fim ao assunto de uma vez por todas, mediante um combate pessoal, até a morte, entre ambos. Mas o adversário não aceitou. Após uma das inúmeras batalhas, as forças de Carlos de Blois tomaram a cidade de Nantes, e a primeira medida que adotou o conde ao entrar na praça conquistada foi distribuir abundantes socorros entre os pobres e necessitados; o mesmo fez em Rennes, em Guingamp e em outras cidades. Durante suas campanhas, fundou igrejas e casas religiosas, onde pudesse orar por sua causa e pelas almas dos que haviam morrido nas batalhas. De modo geral, comportava-se de tal maneira que o menos devoto de seus soldados comentava com os companheiros que o conde estava destinado mais a ser monge do que guerreiro. Descalço e mal coberto por um hábito rasgado, empreendeu uma peregrinação ao santuário de São Ivo, em Tréguier e, quando pôs cerco à cidade de Hennebont, dispensava os soldados de montar guarda para que assistissem à Missa. Por essa razão, protestou um dos oficiais. “Senhor meu”, replicou-lhe Carlos, “sempre teremos cidades e castelos para conquistar. Se os perdermos, Deus nos ajudará a recuperá-los. Também a Missa a temos com frequência, mas é impossível deixarmos de assisti-la”. A bem da verdade, Carlos era tão bom soldado quanto bom cristão, mas detestava a guerra. Contava com o apoio do rei da França, enquanto seu inimigo, João de Montfort, tinha a ajuda do rei Eduardo III da Inglaterra, o qual, por razões que só ele conhecia, havia anunciado sua firme intenção de recuperar as propriedades que “por herança legal” possuía na França. Durante quatro anos, Carlos conseguiu conter seus inimigos, mas em 1346 começaram seus reveses e infortúnios. Ao fim de tudo, a França foi derrotada pela Inglaterra na batalha de Crécy, a cidade de Poitiers foi saqueada e a de Poitou quase destruída. Logo depois, Carlos de Blois travou uma furiosa batalha em La Roche-Derrien, perto de Tréguier, foi derrotado, capturado e embarcado em uma nau rumo à Inglaterra.

Desde sua chegada foi encerrado na sinistra Torre de Londres e pediu-se uma soma fabulosa por seu resgate. Como era quase impossível reunir tanto dinheiro, o conde passou nove anos na infecta prisão. Como fizeram tantos prisioneiros na Torre, antes e depois de Carlos de Blois, este tornou mais suportável seu castigo e até o santificou pela paciência com que o suportava e por suas constantes orações. Sua resignação e a tranquila mansidão que mostrava nas dificuldades conquistaram-lhe a simpatia e a admiração dos carcereiros. Assim que obteve sua liberdade, retornou à França e continuou na luta armada durante outros nove anos, para defender seu ducado da Bretanha, com períodos de boa e má fortuna, mas adquirindo sempre maior respeito e admiração por parte do povo que governava. Fez outra peregrinação à igreja da Bonne Nouvelle em Rennes e, durante muito tempo, acreditou-se que esse ato de piedade tinha como propósito comemorar uma das batalhas que havia vencido, mas comprovou-se posteriormente que não havia outro motivo para a peregrinação senão a devoção do beato.
O último encontro armado teve lugar em Auray, em 29 de setembro de 1364. As forças inglesas estavam sob o comando de Sir John Chandos. Os franceses, com Bertrand de Guesclin à frente, foram derrotados. Guesclin foi feito prisioneiro e, no curso da sangrenta batalha, Carlos de Blois, o homem que sempre havia desejado ser um frade franciscano e não um príncipe, caiu morto no campo. Seus restos foram sepultados em Guingamp e não tardou muito para que circulassem insistentemente rumores de numerosos milagres em seu túmulo. Apesar dos fortes protestos de João de Montfort, que temia perder o apoio da Inglaterra caso seu rival fosse proclamado santo, iniciou-se um movimento em favor da canonização de Carlos de Blois. Afirma-se que o Papa Gregório XI chegou a decretar a canonização de Carlos, mas, no tumulto e na confusão da partida do Papa de seu exílio em Avinhão, em 1376, a bula não foi assinada nem promulgada. Contudo, o povo continuou o culto ao Beato Carlos, e em algumas partes celebrava-se uma Festa especial em sua honra. Finalmente, no ano de 1904, o antigo culto ao beato foi confirmado pelo Papa São Pio X.
Os bolandistas mencionam Carlos de Blois entre os praetermissi de 29 de setembro, no Acta Sanctorum, e fazem referência à obra do Papa Bento XIV, De Beatificatione, lib. 2, cap. 8. Veja-se o Monuments du procès de canonisation du B. Charles de Blois (1921), de A. de Sérent, que incluiu na obra o relato escrito por Dom Plaine, em 1872, sobre o Beato Carlos. Consulte-se também G. Lobineau, em Histoire de Bretagne (1744), vol. II, pp. 540-570; N. Maurice-Dénis-Boulet, em La Canonisation de Charles de Blois, nota publicada na Revue d’histoire de l’Église de France, vol. XXVIII (1942), pp. 216-224. [6]
Referência:
Butler, Alban. Vida dos Santos, vol. 3, pp. 703-706.
Jacopo de Varazze, Legenda áurea: vidas de santos. Trad. de Hilário Franco Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 813.
Bollettino della Diocesi di Bologna, Ano 36, I-III (1946) 1ss.
La Settimana del Clero, Ano 2, XII, 23 mar. 1947, p. 1.
Raccolta, 1930, edição inglesa, Benziger Bros., pp. 314-315.
Butler, Alban. Vida dos Santos, vol. 3, pp. 712-714.


























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