Vida de São Lino, papa e Santa Tecla, mártires (23 de setembro)
- Sacra Traditio

- 23 de set.
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Já em nossos tempos, não se discute que São Lino tenha sido o primeiro sucessor de São Pedro na Sé de Roma, mas sobre ele praticamente nada se sabe. Santo Irineu, que escreveu a seu respeito por volta do ano 189, identifica-o com o Lino mencionado por São Paulo em sua segunda carta a Timóteo (4, 21) e dá a entender que foi nomeado bispo antes da morte de São Pedro. O Papa Lino é citado entre os mártires no Cânon da Missa, e sua Festa é celebrada em toda a Igreja do Ocidente na data de hoje, mas o seu martírio é muito duvidoso, já que não houve registro de nenhuma perseguição em seu tempo; além disso, Irineu, ao mencionar os pontífices que sucederam Pedro e que foram martirizados, nomeia apenas São Telésforo.
Ver o Liber Pontificalis (ed. Duchesne), vol. 1, p. 121; Grisar em Geschichte Roms und der Päpste, p. 220; e Lightfoot em St. Clement of Rome, vol. 1, p. 201. [1]

Tecla, a virgem a quem a liturgia do Oriente se refere como a “protomártir entre as mulheres e elevada ao nível dos Apóstolos”, foi uma das heroínas mais reverenciadas nos primeiros tempos da Igreja. Em seu Banquete das Dez Virgens, São Metódio de Olímpo nos conta que era uma donzela muito versada em literatura e filosofia profanas e elogia profusamente a facilidade, a força, a doçura e a modéstia de sua linguagem, pois havia recebido suas instruções nas ciências divinas e nos Evangelhos do próprio São Paulo. Santo Agostinho, São Epifânio, Santo Ambrósio e outros Padres da Igreja afirmam que a pregação de São Paulo a converteu ao cristianismo e que os discursos do Apóstolo acenderam nela o amor pela castidade. São Gregório de Nissa diz, por sua vez, que ela se entregou ao sacrifício de si mesma com um aniquilamento tão absoluto de seus sentidos, que nada parecia seguir vivo nela, fora da razão e do espírito.
Sua lenda, muito difundida e popular, depende inteiramente de um romance composto para o fim do século II e que é conhecido com o nome de Atos de Paulo e Tecla. São Jerônimo os considera apócrifos, e Tertuliano assegura que foram escritos por um presbítero da Ásia, deposto de seu ministério pelas autoridades eclesiásticas quando se comprovou, precisamente, que havia utilizado falsamente o nome de São Paulo. Apesar disso, o livro manteve sua popularidade na Igreja, e uma longa sucessão de escritores, tão famosos quanto os mencionados antes, referiram-se posteriormente a diversos incidentes da narrativa.
Os “Atos” contam que São Paulo (descrito como “um homenzinho de baixa estatura, calvo, de pernas arqueadas, de constituição vigorosa, sobrancelhas muito espessas, nariz longo e um olhar penetrante e atraente”) estava como hóspede na casa de Onésiforo, em Icônio, quando sua presença, sua atitude e suas palavras impressionaram de tal maneira a donzela Tecla que, por influência do Apóstolo, decidiu pôr em prática seus ensinamentos sobre a castidade e a virgindade. Em consequência, rompeu de imediato seu compromisso de casamento com um jovem chamado Tamíris, e sua atitude produziu grande comoção em seu lar. Seus pais mostraram-se indignados, Tamíris tentou dissuadi-la com agrados, promessas e carícias; os criados lhe suplicaram com lágrimas nos olhos, seus amigos e vizinhos discutiram longamente com ela, as autoridades civis intervieram e os magistrados proferiram terríveis ameaças. Recorreu-se, enfim, a todos os meios possíveis para que a jovem agisse razoavelmente, mas Tecla, fortalecida pela graça do Onipotente, resistiu com firmeza a todos os ataques.

Então Tamíris, o noivo desprezado, quis vingar-se e denunciou aos tribunais as atividades de São Paulo, que recebeu o castigo dos açoites e foi expulso da cidade sob a acusação de induzir as donzelas a renunciar ao matrimônio e apartar as casadas de seus maridos. Quanto a Tecla, foi condenada a morrer na fogueira por sua obstinação e, quando as chamas começavam a subir para consumir o corpo da virgem, uma tempestade furiosa explodiu, apagou o fogo, fez todos fugirem em disparada e permitiu que Tecla escapasse para reunir-se a São Paulo em Antioquia.
Estava a donzela nessa cidade quando o siriarca Alexandre a viu passar pelas ruas e, tomado pelo desejo, tentou raptá-la. A jovem começou a lutar corpo a corpo com o rei para se soltar e, no forcejo, rasgou-lhe o manto, lançou ao chão a coroa e derrubou-o. O siriarca, enfurecido por se ver em posição tão ridícula, alvo das risadas do povo, correu a exigir ao governador de Antioquia que castigasse severamente a insolente jovem. Tecla compareceu diante do governador, que a condenou a ser devorada pelas feras. Durante algum tempo, esteve sob vigilância no palácio de certa rainha Trifena (personagem histórico), cuja filha, antes de morrer, havia lhe revelado seu pressentimento de adotar Tecla, porque era uma mulher virtuosa que rezava pela salvação da filha da rainha, “a fim de que sua alma morasse na casa dos justos”.
Quando chegou a data da execução, Tecla foi tirada do palácio e exposta às feras no anfiteatro, mas os leões, em vez de atacá-la, se deitaram a seus pés e os lamberam mansamente, como se quisessem beijá-los. Os tratadores das bestas optaram por retirar os leões e trazer outros animais mais ferozes. Enquanto se realizava a troca, Tecla foi conduzida a um tanque onde havia lobos-marinhos. Quando os verdugos a despojavam de suas vestes para lançá-la às águas, a donzela recordou que ainda não havia sido batizada e então se atirou ao fosso dizendo: “Em nome de Jesus Cristo, eu me batizo em minha última hora”. [a] Os lobos-marinhos morreram como fulminados por um raio e, quando Tecla saiu do fosso, apareceu ao redor dela um halo de fogo e fumaça que ocultava sua nudez aos olhos do público e impedia que as feras se aproximassem. O siriarca Alexandre sugeriu então que fossem soltos touros bravos na arena, para que lutassem entre si com a vítima atada aos chifres de um deles. “Será feito o que pedes, mas será inútil”, disse com ar fatalista o governador e deu a ordem. Quando os touros se precipitaram um contra o outro, enfurecidos, as cordas que prendiam Tecla se romperam e a jovem caiu no chão sem sofrer dano algum, enquanto os touros lutavam entre si, sem se ocuparem dela. Nesse momento, a rainha Trifena desmaiou e o governador ordenou que os jogos fossem suspensos, em consideração às fortes emoções de Trifena, que era parente do César. [b]

Assim, entre os aplausos da multidão, Tecla ficou em liberdade. Vestida com roupas de homem, fugiu de Antioquia para reunir-se com São Paulo na cidade de Mira, na Lícia. O apóstolo lhe deu instruções para que ensinasse a palavra de Deus, e assim o fez a jovem, que partiu para Icônio a fim de converter ao cristianismo sua mãe e outros membros da família. Depois, retirou-se a viver na solidão de uma caverna, na região de Selêucia, onde permaneceu durante setenta e dois anos. A fama dos milagres que realizava em seu retiro chegou aos ouvidos dos médicos gregos das cidades vizinhas, que investigaram as maravilhosas curas e concluíram que aquela Tecla era uma virgem a serviço da deusa Ártemis e, como tal, possuía poderes divinos para devolver a saúde aos enfermos e aleijados. Os médicos, tomados de ciúmes por aquela concorrência, decidiram pagar a alguns rapazes para que fossem até a caverna e matassem (ou violentassem, segundo outras versões) Tecla. Quando os jovens se apresentaram para atacá-la, ela estava de joelhos em oração e, antes que alguém pudesse tocá-la, a rocha se abriu para lhe dar refúgio, pois assim chegou aos braços de seu Senhor. Contudo, outro dos relatos diz que Tecla encontrou, dentro da rocha aberta, um passadiço por onde conseguiu escapar de seus perseguidores e, uma vez livre, dirigiu-se a Roma em busca de São Paulo, que já então havia sido decapitado. E, “após permanecer em Roma por breve tempo, descansou no glorioso sono da morte”. Foi sepultada a uns dois ou três estádios de distância da tumba de seu mestre, São Paulo.
É evidente que esta história é uma fábula, ao menos na maioria de seus detalhes. Também resulta claro que foi escrita com a intenção de exaltar a virtude da virgindade e causar profunda impressão entre os leitores quanto aos ensinamentos do cristianismo sobre a castidade. Mas, mesmo sob este aspecto, os Atos de Paulo e Tecla resultam um tanto extravagantes, pois colocam na boca de São Paulo o ensinamento de que é muito difícil alcançar a salvação sem a virgindade. Por esta razão, houve comentaristas que chegaram a supor que os “Atos” foram escritos sob a influência dos encratitas, uma seita herética que condenava a prática de beber vinho, comer carne e contrair matrimônio. Na realidade, Santa Tecla não derramou seu sangue por Jesus Cristo; seu martírio consistiu nos reproches e castigos que recebeu de seu prometido e de seus familiares, em suas provas na fogueira e diante das feras. Esses foram os três tormentos a que foi submetida, segundo refere o Rituale Romanum nas orações para encomendar a alma dos moribundos, com estas palavras:
“E assim como Tu libertaste a bem-aventurada virgem e mártir Tecla dos três cruéis tormentos, digna-Te libertar a alma deste Teu servo e levá-lo a gozar Contigo da bem-aventurança celestial”.

Da monumental igreja edificada no lugar onde se supõe ter estado a caverna que Tecla habitou, em Meriamlik, perto de Selêucia, difundiu-se o culto e a veneração por esta santa em toda a cristandade; ela é comemorada na liturgia romana e seu nome é mencionado no Cânon da Missa Ambrosiana.
O texto grego dos Atos de Paulo e Tecla foi editado por Tischendorf em 1851 e reeditado por Lipsius-Bonnet em 1891, em Acta Apostolorum Apocrypha, vol. 1. A versão síria foi publicada por W. Wright em 1871, e a armênia por F. C. Conybeare em The Apology and Acts of Apollonius and other Monuments of Early Christianity (1894). Ver também Pirot, em Supplément au Dictionnaire de la Bible (1926), vol. 1, cc. 494-495. Sir W. M. Ramsey, em seu livro The Church in the Roman Empire, adere ao ponto de vista de que realmente existiu uma mulher chamada Tecla que se converteu pelos ensinamentos do Apóstolo São Paulo. Em DCB, vol. IV, pp. 882-896, há uma extensa discussão sobre os Atos, assim como em uma tradução inglesa dos mesmos por J. Orr, New Testament Apocryphal Writings (1903). [2]
Referência:
Butler, Alban. Vida dos Santos, vol. 3, pp. 497.
Ibid. pp. 497-498.
Notas:
a. De acordo com a fé católica, o Batismo é um sacramento que não pode ser administrado a si mesmo. É sempre necessário um ministro (ordinário ou extraordinário), que batize outra pessoa usando a fórmula trinitária com água. O episódio narrado nas Atas de Paulo e Tecla pertence a uma tradição apócrifa e lendária, sem autoridade histórica ou dogmática. A Igreja jamais o aceitou como exemplo válido, justamente porque o auto-batismo é inválido e impossível.
b. Trifena era prima segunda do imperador Calígula.


























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