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Vida de São Francisco de Assis e Santo Amon (4 de outubro)



São Francisco de Assis, retratado por José de Ribera.
São Francisco de Assis, retratado por José de Ribera.

Diz-se que São Francisco entrou na glória antes mesmo de morrer e que é o único santo que todas as gerações teriam canonizado unanimemente. Essas exagerações, que não carecem de fundamento, permitem-nos afirmar com a mesma verdade que São Francisco é o único santo de nossos dias que todos os não católicos estariam de acordo em canonizar. Certamente não existe nenhum santo tão popular quanto ele até mesmo entre os não cristãos. São Francisco de Assis cativou a imaginação de seus contemporâneos apresentando-lhes a pobreza, a castidade e a obediência nos termos que os trovadores empregavam para cantar o amor, e com sua simplicidade conquistou o nosso mundo tão complicado. Aqueles que “sonham com reformas sociais e religiosas” recorrem ao exemplo do Pobrezinho de Assis para justificar suas aspirações, e os sentimentais não podem resistir à sua imensa bondade. Mas os traços idílicos relacionados ao seu nome — seu matrimônio com a Pobreza, seu amor pelos passarinhos, pela lebre acossada, pelo falcão, pelo pintarroxo da gruta, sua paixão pela natureza (a natureza no século XII ainda era algo “natural”), suas façanhas e palavras românticas — todos esses traços não são, por assim dizer, mais que centelhas de uma alma que vivia mergulhada no sobrenatural, que se nutria no dogma cristão e que se entregara inteiramente, não só a Cristo, mas a Cristo crucificado. Francisco nasceu em Assis, cidade da Úmbria, em 1181 ou 1182. Seu pai, Pedro Bernardone, era comerciante. O nome de sua mãe era Pica, e alguns autores afirmam que pertencia a uma família nobre da Provença. Tanto o pai quanto a mãe de Francisco eram pessoas de grande probidade e ocupavam uma situação confortável. Pedro Bernardone negociava especialmente na França. Como se encontrava nesse país quando nasceu seu filho, as pessoas o apelidaram “Francesco” (o francês), embora no batismo tenha recebido o nome de João. Na juventude, Francisco era muito dado às tradições cavaleirescas e românticas que os trovadores propagavam. Dispunha de dinheiro em abundância e o gastava pródigamente, com ostentação. Nem os negócios do pai nem os estudos lhe interessavam minimamente. O que realmente lhe interessava era gozar da vida. No entanto, não levava uma vida dissoluta e jamais recusava uma esmola aos mendigos que a pediam “pelo amor de Deus”.


Quando Francisco tinha cerca de vinte anos, estourou a discórdia entre as cidades de Perugia e Assis, e o jovem caiu prisioneiro dos peruginos. A prisão durou um ano, e Francisco a suportou alegremente. Porém, ao recobrar a liberdade, caiu gravemente enfermo. A doença, na qual provou mais uma vez sua paciência, fortaleceu e amadureceu seu espírito. Quando se sentiu suficientemente restabelecido, decidiu combater no exército de Gualtério de Brienne, no sul da Itália. Para isso, comprou uma armadura custosa e um manto magnífico. Mas um dia, passeando em seu novo traje, encontrou um cavaleiro mal vestido que havia caído na pobreza; movido de compaixão por aquela desventura, Francisco trocou suas ricas vestes pelas do pobre cavaleiro. Nessa noite, sonhou com um esplêndido palácio cheio de armas, sobre as quais estava gravado o sinal da cruz, e pareceu-lhe ouvir uma voz que lhe dizia que aquelas armas pertenciam a ele e a seus soldados. Francisco partiu para a Apúlia com o coração leve e a segurança de triunfar, mas nunca chegou ao campo de batalha. Em Espoleto, caiu novamente doente e, durante a enfermidade, ouviu uma voz celeste que o exortava a “servir ao Senhor e não ao servo”. O jovem obedeceu. A princípio voltou à antiga vida, mas com menos leviandade. As pessoas, ao vê-lo recolhido, diziam que estava apaixonado. “Sim — replicava Francisco — vou casar-me com uma jovem mais bela e mais nobre do que todas as que conheceis”. Pouco a pouco, com muita oração, começou a conceber o desejo de vender todos os seus bens e comprar a pérola preciosa de que fala o Evangelho. Embora ignorasse o que exatamente devia fazer, uma série de claras inspirações sobrenaturais fê-lo compreender que a batalha espiritual começa pela mortificação e pela vitória sobre os instintos.


Certo dia, passeando a cavalo pela planície de Assis, encontrou um leproso. As chagas do mendigo o aterrorizaram; mas, em vez de fugir, aproximou-se do leproso, que estendia a mão pedindo esmola, e lhe deu um beijo. A partir de então, começou a visitar e servir os enfermos nos hospitais. Algumas vezes dava aos pobres suas roupas, outras vezes o dinheiro que levava consigo.


São Francisco a beijar um leproso (litografia a cores)
São Francisco a beijar um leproso (litografia a cores)

Em certa ocasião, enquanto rezava na igreja de São Damião, nos arredores de Assis, pareceu-lhe ouvir o crucifixo repetir três vezes: “Francisco, repara a minha casa, pois vês que está em ruínas.” O santo, vendo que a igreja estava em mau estado, pensou que o Senhor lhe ordenava repará-la; assim, partiu imediatamente, tomou uma boa quantidade de roupas da loja de seu pai e as vendeu juntamente com seu cavalo. Logo levou o dinheiro ao pobre sacerdote encarregado da igreja de São Damião e pediu-lhe licença para morar com ele. O bom sacerdote consentiu que Francisco permanecesse, mas recusou-se a aceitar o dinheiro. O jovem então o deixou no parapeito da janela. Ao saber do que o filho havia feito, Pedro Bernardone correu indignado a São Damião. Mas Francisco havia tido o cuidado de esconder-se. Após alguns dias em oração e jejum, Francisco voltou à cidade, mas estava tão desfigurado e mal vestido que as pessoas zombavam dele como se fosse um louco. Pedro Bernardone, desconcertado com a conduta do filho, levou-o para casa, espancou-o furiosamente (Francisco tinha então vinte e cinco anos), pôs-lhe grilhões nos pés e o trancou em um quarto. A mãe de Francisco encarregou-se de libertá-lo quando o marido estava ausente, e o jovem retornou a São Damião. Seu pai foi buscá-lo novamente, bateu-lhe na cabeça e o ameaçou a voltar imediatamente para casa ou renunciar à herança e pagar-lhe o preço das roupas que havia “roubado”. Francisco não teve dificuldade em renunciar à herança, mas disse a seu pai que o dinheiro das roupas pertencia a Deus e aos pobres. Seu pai o obrigou a comparecer diante do bispo Guido de Assis, que exortou o jovem a devolver o dinheiro e a confiar em Deus: “Deus não deseja que sua Igreja possua bens injustamente adquiridos.” Francisco obedeceu à risca à ordem do bispo e acrescentou: “As roupas que visto também pertencem a meu pai, portanto devo devolvê-las.” Em seguida, despiu-se e entregou as roupas ao pai, dizendo alegremente: “Até agora foste meu pai na terra. Mas doravante poderei dizer: Pai nosso, que estais nos céus.” Pedro Bernardone saiu do palácio episcopal “tremendo de indignação e profundamente ferido.” O bispo deu a Francisco uma velha túnica de lavrador, que pertencia a um de seus servos. Francisco recebeu a primeira esmola de sua vida com grande gratidão, traçou o sinal da cruz sobre a túnica com um pedaço de giz e a vestiu.


São Francisco diante do Ícone de Cristo Crucificado na Igreja de São Damião (litografia a cores)
São Francisco diante do Ícone de Cristo Crucificado na Igreja de São Damião (litografia a cores)

Em seguida, partiu em busca de um lugar conveniente para se estabelecer. Ia cantando alegremente os louvores divinos pelo caminho real, quando encontrou alguns salteadores que lhe perguntaram quem era. Ele respondeu: “Sou o arauto do Grande Rei.” Os salteadores o espancaram e o lançaram em uma vala coberta de neve. Francisco prosseguiu seu caminho cantando os louvores divinos. Em um mosteiro, obteve esmola e trabalho como se fosse um mendigo. Quando chegou a Gubbio, uma pessoa que o conhecia o levou para sua casa e lhe deu uma túnica, um cinturão e umas sandálias de peregrino. O traje era muito pobre, mas decente. Francisco o usou por dois anos, ao fim dos quais voltou a São Damião. Para reparar a igreja, foi pedir esmolas em Assis, onde todos o conheciam como rico e, naturalmente, teve de suportar as zombarias e o desprezo de mais de um mal-intencionado. Ele mesmo transportava as pedras necessárias para reparar a igreja e ajudava no trabalho dos pedreiros. Uma vez terminadas as reparações na igreja de São Damião, Francisco empreendeu um trabalho semelhante na antiga igreja de São Pedro. Depois, mudou-se para uma pequena capelinha chamada Porciúncula, que pertencia à abadia beneditina de Monte Subásio. Provavelmente o nome da capelinha aludia ao fato de ter sido construída em uma reduzida parcela de terra. A Porciúncula situava-se em uma planície, a uns quatro quilômetros de Assis e, naquela época, estava abandonada e quase em ruínas. A tranquilidade do lugar agradou tanto a Francisco quanto o título de Nossa Senhora dos Anjos, em cuja honra havia sido erguida a capela. Francisco a reparou e fixou nela sua residência. Ali o céu lhe mostrou finalmente o que esperava dele, no dia da Festa de São Matias do ano 1209. Naquele tempo, o evangelho da Missa da Festa dizia: “Ide e pregai, dizendo: O Reino de Deus chegou... Dai gratuitamente o que recebestes gratuitamente... Não possuais ouro... nem duas túnicas, nem sandálias, nem cajado... Eis que vos envio como cordeiros em meio de lobos...” (Mt. 10, 7-19). Essas palavras penetraram até o mais profundo do coração de Francisco e este, aplicando-as literalmente, deu suas sandálias, seu cajado e seu cinturão e ficou apenas com a pobre túnica cingida com um cordão. Tal foi o hábito que deu a seus irmãos um ano mais tarde: a túnica de lã grosseira dos pastores e camponeses da região. Vestido dessa forma, começou a exortar à penitência com tal energia que suas palavras feriam os corações dos ouvintes. Quando encontrava alguém no caminho, saudava com estas palavras: “A paz do Senhor esteja contigo.” Deus já lhe havia concedido o dom da profecia e o dom dos milagres. Quando pedia esmolas para reparar a igreja de São Damião, costumava dizer: “Ajudai-me a terminar esta igreja. Um dia haverá aqui um convento de religiosas em cujo bom nome se glorificarão o Senhor e a Igreja universal.” A profecia se cumpriu cinco anos mais tarde em Santa Clara e suas religiosas. Um habitante de Espoleto sofria de um câncer que lhe havia desfigurado horrivelmente o rosto. Em certa ocasião, ao cruzar-se com São Francisco, o homem tentou lançar-se a seus pés, mas o santo o impediu e o beijou no rosto. O enfermo ficou instantaneamente curado. São Boaventura comentava a esse propósito: “Não sei se é mais de admirar o beijo ou o milagre”.


São Francisco a ajudar os pobres (litografia a cores)
São Francisco a ajudar os pobres (litografia a cores)

Francisco logo teve numerosos seguidores e alguns queriam tornar-se seus discípulos. O primeiro discípulo foi Bernardo de Quintavalle, um rico comerciante de Assis. No início, Bernardo observava com curiosidade a evolução de Francisco e com frequência o convidava para sua casa, onde sempre lhe preparava um leito próximo ao seu. Bernardo fingia-se de dormido para observar como o servo de Deus se levantava silenciosamente e passava longo tempo em oração, repetindo estas palavras: “Deus meus et omnia” (Meu Deus e meu tudo). Por fim, compreendeu que Francisco era “verdadeiramente um homem de Deus” e logo lhe suplicou que o admitisse como discípulo. Desde então, juntos assistiam à Missa e estudavam a Sagrada Escritura para conhecer a vontade de Deus. Como as indicações da Bíblia concordavam com seus propósitos, Bernardo vendeu tudo o que possuía e repartiu o produto entre os pobres. Pedro de Cattaneo, cônego da catedral de Assis, também pediu a Francisco que o admitisse como discípulo, e o santo lhes “concedeu o hábito” aos dois juntos, em 16 de abril de 1209. O terceiro companheiro de São Francisco foi o irmão Gil, famoso por sua grande simplicidade e sabedoria espiritual. Quando o grupo já contava com uns doze membros, Francisco redigiu uma regra breve e informal, que consistia principalmente nos conselhos evangélicos para alcançar a perfeição. Em 1210, foi a Roma apresentar sua regra para aprovação do Sumo Pontífice. Inocêncio III mostrou-se adverso no princípio. Por outro lado, muitos cardeais opinavam que as ordens religiosas já existentes precisavam de reforma, não de multiplicação, e que a nova maneira de conceber a pobreza era impraticável. O cardeal João Colonna argumentou em favor de Francisco que sua regra expressava os mesmos conselhos com que o Evangelho exortava à perfeição. Mais tarde, o Papa relatou a seu sobrinho, que por sua vez o comunicou a São Boaventura, que havia visto em sonhos uma palmeira que crescia rapidamente e, depois, havia visto Francisco sustentando com seu corpo a basílica de Latrão, que estava a ponto de ruir. Cinco anos mais tarde, o mesmo Pontífice teria um sonho semelhante a propósito de São Domingos. Inocêncio III mandou, pois, chamar Francisco e aprovou verbalmente sua regra; em seguida, impôs-lhe a tonsura, assim como a seus companheiros, e lhes deu por missão pregar a penitência.


São Francisco a pregar o seu primeiro sermão (litografia a cores)
São Francisco a pregar o seu primeiro sermão (litografia a cores).

São Francisco e seus companheiros instalaram-se provisoriamente em uma cabana de Rivo Torto, nos arredores de Assis, de onde saíam para pregar por toda a região. Pouco depois, tiveram dificuldades com um camponês que reclamava a cabana para usá-la como estábulo de seu asno. Francisco respondeu: Deus não nos chamou para preparar estábulos para os asnos”, e imediatamente deixou o lugar e partiu para ver o abade de Monte Subásio. Em 1212, o abade deu a Francisco a capela da Porciúncula, com a condição de que a conservasse sempre como a igreja principal da nova ordem. O santo se negou a aceitar a propriedade da capelinha e apenas a admitiu emprestada. Como prova de que a Porciúncula continuava como propriedade dos beneditinos, Francisco lhes enviava todos os anos, em forma de compensação pelo empréstimo, uma cesta de peixes pescados no riacho vizinho. Por sua vez, os beneditinos correspondiam enviando-lhe um tonel de azeite. Tal costume ainda existe entre os franciscanos de Santa Maria dos Anjos e os beneditinos de São Pedro de Assis.


Ao redor da Porciúncula, os frades construíram várias cabanas primitivas, porque São Francisco não permitia que a ordem em geral e os conventos em particular possuíssem bens temporais. Havia feito da pobreza o fundamento de sua ordem e seu amor à pobreza se manifestava em sua maneira de vestir-se, nos utensílios que empregava e em cada um de seus atos. Costumava chamar seu corpo de “o irmão jumento”, porque o considerava feito para transportar carga, para receber golpes e para comer pouco e mal. Quando via algum frade ocioso, chamava-o de “irmão mosca”, porque em vez de cooperar com os demais, estragava o trabalho dos outros e lhes era incômodo. Pouco antes de morrer, considerando que o homem está obrigado a tratar com caridade seu corpo, Francisco pediu perdão ao seu por tê-lo tratado talvez com rigor excessivo. O santo sempre se opôs às austeridades indiscretas e exageradas. Certa vez, vendo que um frade havia perdido o sono por causa do jejum excessivo, Francisco levou-lhe alimento e comeu com ele para que se sentisse menos mortificado.


No início de sua conversão, sentindo-se atacado por violentas tentações de impureza, costumava revolver-se nu sobre a neve. Em certa ocasião, quando a tentação foi ainda mais violenta que de costume, o santo se disciplinou furiosamente; como isso não bastasse para afastá-la, acabou por revolver-se sobre os espinheiros e os abrolhos. Sua humildade não consistia simplesmente em um desprezo sentimental de si mesmo, mas na convicção de que “aos olhos de Deus o homem vale pelo que é e nada mais”. Considerando-se indigno do sacerdócio, Francisco apenas recebeu o diaconato. Detestava de todo coração as singularidades. Assim, quando lhe contaram que um dos frades era tão amante do silêncio que só se confessava por sinais, respondeu contrariado: “Isso não procede do espírito de Deus, mas do demônio; é uma tentação e não um ato de virtude.” Deus iluminava a inteligência de seu servo com uma luz de sabedoria que não se encontra nos livros. Quando certo frade pediu-lhe permissão para estudar, Francisco respondeu que, se repetisse com devoção o “Gloria Patri”, chegaria a ser sábio aos olhos de Deus, e ele mesmo era o melhor exemplo dessa sabedoria adquirida dessa forma.


São Francisco a pregar aos pássaros (litografia a cores).
São Francisco a pregar aos pássaros (litografia a cores).

Seus contemporâneos falam frequentemente do carinho de Francisco pelos animais e do poder que tinha sobre eles. Por exemplo, é famosa a repreensão que dirigiu às andorinhas quando ia pregar em Alviano: “Irmãs andorinhas: agora é minha vez de falar; vós já tagarelaste bastante.” Também são famosas as anedotas dos passarinhos que vinham escutá-lo quando cantava as grandezas do Criador, do coelhinho que não queria separar-se dele no Lago Trasimeno e do lobo de Gubbio amansado pelo santo. Alguns autores consideram tais anedotas simples alegorias, enquanto outros lhes atribuem valor histórico.


Os primeiros anos da ordem em Santa Maria dos Anjos foram um período de treinamento na pobreza e na caridade fraterna. Os frades trabalhavam em seus ofícios e nos campos vizinhos para ganhar o pão de cada dia. Quando não havia trabalho suficiente, costumavam pedir esmola de porta em porta; mas o fundador lhes havia proibido de aceitar dinheiro. Estavam sempre prontos a servir a todos, particularmente os leprosos e necessitados. São Francisco insistia que chamassem os leprosos de “meus irmãos cristãos”, e os enfermos não deixavam de apreciar essa profunda delicadeza. O número dos companheiros do santo continuava a aumentar; entre eles estava o famoso “jogral de Deus, frei Junípero; por causa da simplicidade do irmãozinho, Francisco costumava repetir: “Quisera ter toda uma floresta de tais juníperos.” Certa vez, quando o povo de Roma se reuniu para receber frei Junípero, seus companheiros o encontraram brincando pacificamente com as crianças fora das muralhas da cidade. Santa Clara costumava chamá-lo “o brinquedo de Deus. Clara havia deixado Assis para seguir Francisco na primavera de 1212, depois de ouvi-lo pregar. O santo conseguiu estabelecer Clara e suas companheiras em São Damião, e a comunidade de religiosas logo se tornou, para os franciscanos, o que as monjas de Prouille haviam de ser para os dominicanos: uma muralha de força feminina, um vergel escondido de oração que tornava fecundo o trabalho dos frades.


No outono desse mesmo ano, Francisco, não contente com tudo o que já havia sofrido e trabalhado pelas almas na Itália, resolveu ir evangelizar os maometanos. Assim, embarcou em Ancona com um companheiro rumo à Síria; mas uma tempestade fez naufragar o navio na costa da Dalmácia. Como os frades não tinham dinheiro para prosseguir a viagem, foram obrigados a esconder-se furtivamente em um navio para voltar a Ancona. Depois de pregar um ano no centro da Itália (o senhor de Chiusi pôs então à disposição dos frades um local de retiro em Monte Alverne, nos Apeninos da Toscana), São Francisco decidiu partir novamente para pregar aos maometanos no Marrocos. Mas Deus havia disposto que ele nunca chegasse ao seu destino: o santo caiu enfermo na Espanha e, depois, teve de retornar à Itália. Ali se consagrou apaixonadamente a pregar o Evangelho aos cristãos.


São Domingos e São Francisco (litografia)
São Domingos e São Francisco (litografia).

São Francisco deu à sua ordem o nome de “Frades Menores” por humildade, pois queria que seus irmãos fossem os servos de todos e buscassem sempre os lugares mais humildes. Com frequência exortava seus companheiros ao trabalho manual e, ainda que lhes permitisse pedir esmola, tinha-lhes proibido aceitar dinheiro. Pedir esmola não constituía para ele uma vergonha, já que era uma maneira de imitar a pobreza de Cristo. O santo não permitia que seus irmãos pregassem em uma diocese sem permissão expressa do bispo. Entre outras coisas, dispôs que “se algum dos frades se afastasse da fé católica em obras ou palavras e não se corrigisse, deveria ser expulso da irmandade”. Todas as cidades queriam ter o privilégio de acolher os novos frades, e as comunidades se multiplicaram na Úmbria, Toscana, Lombardia e Ancona. Conta-se que em 1216, Francisco solicitou ao Papa Honório III a indulgência da Porciúncula ou “perdão de Assis”. [a] No ano seguinte, conheceu em Roma São Domingos, que havia pregado a fé e a penitência no sul da França na época em que Francisco era “um fidalgo de Assis”. São Francisco tinha também a intenção de ir pregar na França. Mas, como o cardeal Ugolino (que mais tarde foi Papa com o nome de Gregório IX) o dissuadisse disso, enviou em seu lugar os irmãos Pacífico e Ângelo. Este último havia de introduzir mais tarde a ordem dos frades menores na Inglaterra. O sábio e bondoso cardeal Ugolino exerceu grande influência no desenvolvimento da ordem. Os companheiros de São Francisco eram já tão numerosos, que se impunha forçosamente certa forma de organização sistemática e de disciplina comum. Assim, procedeu-se a dividir a ordem em províncias, à frente de cada uma das quais se colocou um ministro, “encarregado do bem espiritual dos irmãos; se algum deles viesse a perder-se pelo mau exemplo do ministro, este teria que responder por ele diante de Jesus Cristo.” Os frades já haviam cruzado os Alpes e tinham missões na Espanha, Alemanha e Hungria.


O primeiro capítulo geral se reuniu, na Porciúncula, em Pentecostes do ano de 1217. Em 1219, teve lugar o capítulo “das esteiras”, assim chamado pelas cabanas que tiveram de ser construídas às pressas com esteiras para abrigar os delegados. Conta-se que se reuniram então cinco mil frades. Nada tem de estranho que em uma comunidade tão numerosa, o espírito do fundador se tivesse diluído um tanto. Os delegados achavam que São Francisco se entregava excessivamente à ventura, isto é, com demasiada confiança em Deus, e exigiam um espírito mais prático. O santo indignou-se profundamente e replicou: “Meus irmãos, o Senhor me chamou pelo caminho da simplicidade e da humildade, e por esse caminho continua a conduzir-me, não só a mim, mas a todos os que estejam dispostos a seguir-me... O Senhor me disse que deveríamos ser pobres e loucos neste mundo, e que esse e não outro seria o caminho pelo qual nos guiaria. Queira Deus confundir a vossa sabedoria e a vossa ciência e fazer-vos voltar à vossa primitiva vocação, ainda que seja contra vossa vontade e mesmo que a acheis tão imperfeita.” Àqueles que lhe propuseram que pedisse ao Papa permissão para que os frades pudessem pregar em todas as partes sem autorização do bispo, Francisco respondeu: “Quando os bispos virem que viveis santamente e que não tendes intenção de atentar contra sua autoridade, serão os primeiros a rogar-vos que trabalheis pelo bem das almas que lhes foram confiadas. Considerai como o maior dos privilégios não gozar de privilégio algum...” Ao terminar o capítulo, São Francisco enviou alguns frades à primeira missão entre os infiéis da Tunísia e de Marrocos e reservou para si a missão entre os sarracenos do Egito e da Síria. Em 1215, durante o Concílio de Latrão, o Papa Inocêncio III havia pregado uma nova Cruzada, mas tal Cruzada havia-se reduzido simplesmente a reforçar o Reino Latino do Oriente. Francisco queria brandir a espada de Deus.


“São Francisco diante do Sultão do Egito, Malik-al-Kamil”, de Zacarías González Velázquez.
“São Francisco diante do Sultão do Egito, Malik-al-Kamil”, de Zacarías González Velázquez.

Em junho de 1219, embarcou em Ancona com doze frades. O navio os conduziu a Damieta, na foz do Nilo. Os cruzados haviam posto cerco à cidade, e Francisco sofreu muito ao ver o egoísmo e os costumes dissolutos dos soldados da cruz. Consumido pelo zelo da salvação dos sarracenos, decidiu passar ao campo do inimigo, embora os cruzados lhe dissessem que a cabeça dos cristãos estava a prêmio. Tendo conseguido a autorização do legado pontifício, Francisco e o irmão Iluminado aproximaram-se do campo inimigo, gritando: “Sultão, sultão!” Quando os conduziram à presença de Malek-al-Kamil, Francisco declarou ousadamente:


“Não são os homens que me enviaram, mas Deus onipotente. Venho mostrar a ti e a teu povo o caminho da salvação; venho anunciar-vos as verdades do Evangelho.

O sultão ficou impressionado e rogou a Francisco que permanecesse com ele. O santo replicou:


“Se tu e teu povo estais dispostos a ouvir a palavra de Deus, com gosto ficarei convosco. E se ainda vacilais entre Cristo e Maomé, manda acender uma fogueira; eu entrarei nela com vossos sacerdotes, e assim vereis qual é a verdadeira fé.”

O sultão respondeu que provavelmente nenhum dos sacerdotes queria meter-se na fogueira e que não podia submetê-los a essa prova para não soliviantar o povo. Poucos dias mais tarde, Malek-al-Kamil mandou que Francisco voltasse ao campo dos cristãos. Desalentado ao ver o reduzido êxito de sua pregação entre os sarracenos e entre os cristãos, o santo passou a visitar os Lugares Santos. Ali recebeu uma carta em que seus irmãos lhe pediam urgentemente que retornasse à Itália.


São Francisco em meditação por Francisco de Zurbarán
São Francisco em meditação por Francisco de Zurbarán.

Durante a ausência de Francisco, seus dois vigários, Mateus de Narni e Gregório de Nápoles, haviam introduzido certas inovações que tendiam a uniformizar os frades menores com as outras ordens religiosas e a enquadrar o espírito franciscano no rígido esquema da observância monástica e das regras ascéticas. As religiosas de São Damião já tinham uma constituição própria, redigida pelo cardeal Ugolino sobre a base da regra de São Bento. Ao chegar a Bolonha, Francisco teve a desagradável surpresa de encontrar seus irmãos hospedados em um esplêndido convento. O santo se negou a pôr os pés nele e viveu com os frades pregadores. Em seguida mandou chamar o guardião do convento franciscano, repreendeu-o severamente e ordenou que os frades abandonassem a casa. Tais acontecimentos tinham, aos olhos do santo, as proporções de uma verdadeira traição: tratava-se de uma crise da qual a ordem teria de sair sublimada ou destruída. São Francisco se trasladou a Roma, onde conseguiu que Honório III nomeasse o cardeal Ugolino protetor e conselheiro dos franciscanos, já que o purpurado havia depositado uma fé cega no fundador e possuía grande experiência nos assuntos da Igreja. Ao mesmo tempo, Francisco se entregou ardentemente à tarefa de revisar a regra, para o que convocou um novo capítulo geral que se reuniu na Porciúncula em 1221. O santo apresentou aos delegados a regra revisada. O que se referia à pobreza, à humildade e à liberdade evangélica, características da ordem, ficava intacto. Isso constituía uma espécie de desafio do fundador aos dissidentes e legalistas que, às escondidas, tramavam uma verdadeira revolução do espírito franciscano. O chefe da oposição era o irmão Elias de Cortona.


O fundador havia renunciado à direção da ordem, de sorte que seu vigário, frei Elias, era praticamente o ministro geral. No entanto, não se atreveu a opor-se ao fundador, a quem respeitava sinceramente. Na realidade, a ordem já era demasiado grande, como disse o próprio São Francisco: “Se houvesse menos frades menores, o mundo os veria menos e desejaria que fossem mais.” Ao cabo de dois anos, durante os quais teve de lutar contra a corrente cada vez mais forte que tendia a desenvolver a ordem em uma direção que ele não havia previsto e que lhe parecia comprometer o espírito franciscano, o santo empreendeu uma nova revisão da regra. Depois a comunicou ao irmão Elias para que este a passasse aos ministros, mas o documento se extraviou e o santo teve de ditar novamente a revisão ao irmão Leão, em meio ao clamor dos frades que afirmavam que a proibição de possuir bens em comum era impraticável. A regra, tal como foi aprovada por Honório III em 1223, representava substancialmente o espírito e o modo de vida pelo qual havia lutado São Francisco desde o momento em que se despojou de suas ricas vestes diante do bispo de Assis. Uns dois anos antes, São Francisco e o cardeal Ugolino haviam redigido uma regra para a confraria de leigos que se haviam associado aos frades menores e que correspondia ao que atualmente chamamos de terceira ordem, fundada no espírito da “Carta a todos os cristãos”, que Francisco havia escrito nos primeiros anos de sua conversão. A confraria, formada por leigos entregues à penitência, que levavam uma vida muito diferente da que se costumava então, chegou a ser uma grande força religiosa na Idade Média. No direito canônico atual, os terceiros das diversas Ordens ainda gozam de um estatuto especificamente diferente do dos membros das confrarias e congregações marianas.


São Francisco de Assis Preparando o Presépio de Natal em Grecchio POR Giotto di Bondone
São Francisco de Assis Preparando o Presépio de Natal em Grecchio POR Giotto di Bondone.

São Francisco passou o Natal de 1223 em Greccio, no vale de Rieti. Com tal ocasião, havia dito a seu amigo, João da Velita: “Quisera fazer uma espécie de representação viva do nascimento de Jesus em Belém, para presenciar, por assim dizer, com os olhos do corpo a humildade da Encarnação e vê-lo recostado na manjedoura entre o boi e o asno.” De fato, o santo construiu então no eremitério uma espécie de caverna e os camponeses dos arredores assistiram à Missa da meia-noite, na qual Francisco atuou como diácono e pregou sobre o mistério da Natividade. Provavelmente já existia para então o costume do “presépio” ou “nascimento”, mas o fato de que o santo o tivesse praticado contribuiu indubitavelmente a popularizá-lo. São Francisco permaneceu vários meses no retiro de Greccio, consagrado à oração, mas ocultou zelosamente aos olhos dos homens as graças especialíssimas que Deus lhe comunicou na contemplação. O irmão Leão, que era seu secretário e confessor, afirmou que o havia visto várias vezes durante a oração elevar-se tão alto sobre o solo que mal podia alcançar-lhe os pés e, em certas ocasiões, nem sequer isso.


Por volta da Festa da Assunção de 1224, o santo se retirou ao Monte Alverne e construiu ali uma pequena cela. Levou consigo o irmão Leão, mas proibiu que alguém fosse visitá-lo até depois da Festa de São Miguel. Foi ali onde teve lugar, por volta do dia da Santa Cruz de 1224, o milagre dos estigmas, do qual falamos em 17 de setembro. Francisco tratou de ocultar aos olhos dos homens os sinais da Paixão do Senhor que tinha impressos no corpo; por isso, a partir de então levava sempre as mãos dentro das mangas do hábito e usava meias e sapatos. No entanto, desejando o conselho de seus irmãos, comunicou o sucedido ao irmão Iluminado e a alguns outros, mas acrescentou que lhe haviam sido reveladas certas coisas que jamais descobriria a homem algum sobre a terra. Em certa ocasião em que se achava enfermo, alguém propôs que se lhe lesse um livro para distraí-lo. O santo respondeu: “Nada me consola tanto como a contemplação da vida e Paixão do Senhor. Ainda que tivesse de viver até o fim do mundo, com esse só livro me bastaria.”


Estigmatização de São Francisco, por Giotto.
Estigmatização de São Francisco, por Giotto.

Francisco havia se enamorado da santa pobreza enquanto contemplava a Cristo crucificado e meditava na nova crucifixão que sofria na pessoa dos pobres. O santo não desprezava a ciência, mas não a desejava para seus discípulos. Os estudos só tinham razão de ser como meios para um fim e só podiam aproveitar aos frades menores se não lhes impedissem de consagrar à oração um tempo ainda maior e se lhes ensinassem mais a pregarem a si mesmos do que a falarem a outros. Francisco aborrecia os estudos que alimentavam mais a vaidade que a piedade, porque esfriavam a caridade e secavam o coração. Sobretudo, temia que a senhora Ciência se convertesse em rival da dama Pobreza. Vendo com quanta ansiedade acudiam às escolas e buscavam os livros seus irmãos, Francisco exclamou em certa ocasião: “Impulsionados pelo mau espírito, meus pobres irmãos acabarão por abandonar o caminho da simplicidade e da pobreza.” Antes de sair do Monte Alverne, o santo compôs o “Hino de louvor ao Altíssimo”. Pouco depois da Festa de São Miguel, desceu finalmente ao vale, marcado pelos estigmas da Paixão e curou os enfermos que lhe saíram ao encontro.


Os dois anos que lhe restavam de vida foram um período de sofrimento tão intenso quanto sua alegria espiritual. Sua saúde ia piorando, os estigmas lhe causavam dor e o debilitavam, e quase havia perdido a visão. No verão de 1225 esteve tão enfermo, que o cardeal Ugolino e o irmão Elias o obrigaram a pôr-se nas mãos do médico do Papa em Rieti. O santo obedeceu com simplicidade. A caminho de Rieti foi visitar Santa Clara no convento de São Damião. Ali, em meio aos mais agudos sofrimentos físicos, escreveu o “Cântico do Irmão Sol” e o adaptou a uma melodia popular para que seus irmãos pudessem cantá-lo. Depois trasladou-se a Monte Rainerio, onde se submeteu ao tratamento brutal que o médico lhe havia prescrito, mas a melhora que isso lhe produziu foi apenas momentânea. Seus irmãos o levaram então a Siena para consultar outros médicos, mas para então o santo já estava moribundo. No testamento que ditou a seus frades, recomendava-lhes a caridade fraterna, exortava-os a amar e observar a santa pobreza e a amar e honrar a Igreja. Pouco antes de sua morte, ditou um novo testamento para recomendar a seus irmãos que observassem fielmente a regra e trabalhassem manualmente, não pelo desejo de lucro, mas para evitar a ociosidade e dar bom exemplo. “Se não nos pagarem nosso trabalho, recorramos à mesa do Senhor, pedindo esmola de porta em porta”.


A Morte de São Francisco por Jean Baptiste Jouvenet.
A Morte de São Francisco por Jean Baptiste Jouvenet.

Quando Francisco voltou a Assis, o bispo o hospedou em sua própria casa. Francisco rogou aos médicos que lhe dissessem a verdade, e estes confessaram que só lhe restavam algumas poucas semanas de vida. “Bem-vinda, irmã Morte!”, exclamou o santo e, ato contínuo, pediu que o transportassem à Porciúncula. Pelo caminho, quando a comitiva se encontrava no cume de uma colina, de onde se dominava o panorama de Assis, pediu aos que carregavam a maca que se detivessem um momento e então voltou seus olhos cegos em direção à cidade e implorou as bênçãos de Deus para ela e seus habitantes. Depois ordenou aos carregadores que se apressassem em levá-lo à Porciúncula. Quando sentiu que a morte se aproximava, Francisco enviou um mensageiro a Roma para chamar a nobre dama Giacoma di Settesoli, que havia sido sua protetora, pedindo-lhe que trouxesse consigo alguns círios e um sayal para amortalhá-lo, assim como uma porção de um bolo de que gostava muito. Felizmente, a dama chegou à Porciúncula antes que o mensageiro partisse. Francisco exclamou: “Bendito seja Deus que nos enviou nossa irmã Giacoma! A regra que proíbe a entrada de mulheres não se aplica a nossa irmã Giacoma. Dizei-lhe que entre”. O santo enviou uma última mensagem a Santa Clara e a suas religiosas e pediu a seus irmãos que entoassem os versos do “Cântico do Sol” nos quais louva a morte. Em seguida rogou que lhe trouxessem um pão e o repartiu entre os presentes em sinal de paz e de amor fraterno, dizendo: “Eu fiz quanto estava da minha parte, que Cristo vos ensine a fazer o que está da vossa.” Seus irmãos o estenderam por terra e o cobriram com um velho hábito que o guardião lhe havia emprestado. Francisco exortou seus irmãos ao amor de Deus, da pobreza e do Evangelho, “acima de todas as regras”, e abençoou a todos os seus discípulos, tanto aos presentes como aos ausentes. Morreu em 3 de outubro de 1226, depois de ouvir a leitura da Paixão do Senhor segundo São João.


Francisco havia pedido que o sepultassem no cemitério dos criminosos de Colle d’Inferno. Em vez disso, seus irmãos levaram no dia seguinte o cadáver em solene procissão à igreja de São Jorge, em Assis. Ali esteve depositado até dois anos depois da canonização. Em 1230, foi secretamente trasladado à grande basílica construída pelo irmão Elias. O cadáver desapareceu da vista dos homens durante seis séculos, até que em 1818, após cinquenta e dois dias de busca, foi descoberto sob o altar-mor, a vários metros de profundidade. O santo não tinha mais que quarenta e quatro ou quarenta e cinco anos ao morrer. Não podemos relatar aqui, nem mesmo em resumo, a azarosa e brilhante história da ordem que fundou. Digamos simplesmente que seus três ramos — o dos frades menores, o dos frades menores capuchinhos e o dos frades menores conventuais — formam o instituto religioso mais numeroso que existe atualmente na Igreja. E, segundo a opinião do historiador David Knowles, ao fundar esse instituto, São Francisco “contribuiu mais que ninguém para salvar a Igreja da decadência e da desordem em que havia caído durante a Idade Média.”


Afresco da morte de São Francisco, século XIV por Giotto
Afresco da morte de São Francisco, século XIV por Giotto.

A literatura relacionada com São Francisco é tão vasta e os problemas que apresentam algumas das fontes são tão complicados, que seria impossível entrar em detalhes no espaço de que dispomos. Digamos em primeiro lugar que se conservam alguns breves escritos ascéticos do santo, dos quais o Pe. Edouard d'Alengon fez uma edição crítica. Em segundo lugar, existe toda uma série de “legendae” (a palavra não indica aqui que se trate de relatos fabulosos), ou seja, as biografias primitivas. As mais importantes, do ponto de vista histórico, são a Vita Prima, atribuída a Tomás de Celano, escrita antes de 1229; a Vita Secunda, escrita entre 1244 e 1247, que completa a anterior, e os Miracula, que datam aproximadamente de 1257. Há que citar ainda a biografia oficial, escrita por São Boaventura por volta de 1263; o primeiro texto crítico foi publicado no vol. VIII das Opera omnia do santo, editado em Quaracchi. A Legenda Minor, destinada ao uso litúrgico, baseia-se na biografia escrita por São Boaventura, que a compôs com vistas a pacificar os ânimos. Com efeito, naquela época havia estourado uma violenta controvérsia entre os frades “zelanti” ou “espirituais” e os partidários da observância mitigada. Os membros do primeiro partido apoiavam-se nas palavras e feitos do fundador, tal como se conservavam nas primeiras biografias. São Boaventura suprimiu muitos incidentes da vida do fundador para evitar ocasiões de discórdia, e os superiores da ordem mandaram destruir as “legendae” primitivas. Por isso, os manuscritos dessas lendas são hoje muito raros e alguns deles só vieram à luz graças aos esforços dos investigadores. Está fora de dúvida que o irmão Leão, confidente íntimo de São Francisco, escreveu algumas “cedulae” ou “rotuli” sobre o fundador da ordem, e Paul Sabatier, o grande especialista em questões medievais, sustentou sempre que o documento conhecido pelo nome de Speculum perfectionis refletia o essencial da obra do irmão Leão. A revisão final que Sabatier fez do Speculum perfectionis foi editada por A. G. Little e publicada em 1931 pela British Society of Franciscan Studies. Muito se tem discutido sobre as origens e a data dessa obra. Por outro lado, F. M. Delorme publicou em 1926, com o nome de Legenda antiqua, um texto descoberto em Perúgia; segundo o autor, tal texto tem grandes probabilidades de ser obra do irmão Leão. Outro dos textos primitivos mais importantes é o Sacrum commercium (as conversas de Francisco e seus filhos com a santa Pobreza), escrito provavelmente por João Parenti por volta de 1227. Existem ainda a Legenda trium sociorum, a Legenda de Juliano de Spira e outras obras semelhantes, bem como os Actus beati Francisci; esta última, com o nome italiano de Fioretti, foi traduzida a todas as línguas. Entre as inúmeras biografias modernas, mencionaremos apenas as mais importantes. Em primeiro lugar, deve-se falar da biografia inglesa do capuchinho Cuthbert, que, segundo Sabatier, é a melhor das biografias modernas. O autor a completou com uma série de livros sobre a história e o espírito franciscano primitivo. A biografia de Johannes Jørgensen foi traduzida a muitos idiomas, assim como a biografia escrita por O. Englebert (1950); infelizmente, as traduções inglesas dessas duas obras são muito deficientes. O ensaio de G. K. Chesterton, embora muito breve, está admiravelmente escrito e deixa uma impressão muito vívida. Sabatier, embora não fosse católico, expressou-se em termos muito inteligentes em sua biografia de São Francisco, publicada pela primeira vez em 1894, mas a edição definitiva apareceu em 1931, após a morte do autor. Ver também P. Robinson, The Real St Francis; Felder, The Knight-errant of Assisi e The Ideals of St Francis; St Francis: the Legends and Lauds é uma obra que reúne os escritos dos contemporâneos do santo, com um comentário de O. Karrer. A biografia de J. R. H. Moorman (1950) é inteligente e concisa; o mesmo autor publicou Sources for the Life of St Francis (1940). A obra de Facchinetti, Guida bibliographica (1928), é muito abundante e útil, mas é impossível estar atualizado em matéria de literatura franciscana. [1]



SANTO AMON (c. 350 d.C.)


Santo Amon, eremita.
Santo Amon, eremita.

Repete-se que Santo Amon foi o primeiro dos padres do Egito que estabeleceu um mosteiro em Nitria. Embora tal afirmação não esteja provada, Santo Amon foi sem dúvida um dos mais famosos eremitas do deserto. Após a morte dos pais de Amon, que eram muito ricos, seu tio e outros parentes obrigaram o jovem a contrair matrimônio. Amon tinha então vinte e oito anos. Lendo à sua esposa os louvores que São Paulo faz ao estado de virgindade, conseguiu persuadi-la a viver com ele em perpétua continência durante dezoito anos.


Amon se mortificava severamente a fim de se preparar para as austeridades da vida do deserto. Passava o dia inteiro entregue ao trabalho em um extenso pomar de árvores de bálsamo; ceava com sua esposa algumas ervas e frutos e depois se retirava para orar grande parte da noite. Quando morreram seu tio e os outros parentes que tinham interesse em que ele permanecesse no mundo, Amon, com o consentimento de sua esposa, retirou-se ao deserto de Nitria. Ela reuniu em sua casa uma comunidade de mulheres devotas, e Santo Amon ia a cada seis meses dirigi-las no caminho da vida espiritual.


Nitria, que se chama atualmente Wady Natrun, está situada a uns cento e dez quilômetros ao sudeste de Alexandria. Alguém descreveu assim esse lugar: É um pântano insalubre e coberto de ervas, infestado de répteis e de insetos venenosos. Existem oásis bons e maus; o oásis pantanoso de Nitria recebeu esse nome porque suas águas são salgadas. Os eremitas o escolheram porque era ainda pior que o deserto. Paládio, que visitou Nitria cinquenta anos depois de São Amon, escreve:


Na montanha habitam uns cinco mil homens que levam vidas muito diferentes. Cada um leva a vida que lhe permitem suas forças e lhe aconselham seus desejos, de sorte que uns habitam em comunidade e outros totalmente isolados. Na montanha há sete padarias para alimentar os cinco mil habitantes e os seiscentos anacoretas do deserto. Existe na montanha de Nitria uma grande igreja, junto à qual se erguem três palmeiras. De cada palmeira pende um látego. Um está destinado aos anacoretas que cometem alguma falta; outro aos bandoleiros, caso apareçam alguns; e o terceiro aos peregrinos. Todos os que cometem alguma falta que mereça açoites são amarrados à palmeira, recebem o número de golpes prescrito e depois são postos em liberdade. Junto à igreja há um albergue em que se alojam os peregrinos todo o tempo que desejarem, mesmo que permaneçam dois ou três anos. Os peregrinos, depois de passar uma semana em repouso, são obrigados a trabalhar no pomar, na padaria ou na cozinha. Quando o peregrino é um personagem importante, pode se dedicar à leitura, mas não tem direito de dirigir a palavra a ninguém fora das horas prescritas. Há na montanha alguns médicos e alfaiates. Todos podem tomar vinho e há locais em que se vende. Todos trabalham na manufatura do linho, de sorte que todos ganham o que comem. À hora de nona se eleva de todas as celas o canto dos salmos e, ao ouvi-lo, se acreditaria estar no paraíso. Os ofícios só se celebram na igreja aos sábados e domingos. Oito sacerdotes se ocupam do cuidado da igreja. Enquanto vive o sacerdote mais ancião, nenhum outro celebra os ofícios, nem prega, nem dá ordens, mas todos assistem ao mais velho.” (“História Lausiaca”).

A tentação de Santo Antônio por Salvator Rosa
A tentação de Santo Antônio por Salvator Rosa.

Assim viviam os monges e anacoretas que, segundo a expressão de São Atanásio, “se apartavam de seus parentes e amigos para viver como cidadãos do Céu”.


Os primeiros discípulos de Santo Amon viviam em celas separadas, até que Santo Antão, o Grande, lhes aconselhou que se reunissem sob a direção de um superior prudente. Mas mesmo então o mosteiro não passava de ser uma espécie de colônia de celas independentes. O próprio Santo Antão escolheu o lugar para seu grupo de monges. Santo Amon e Santo Antão costumavam visitar-se mutuamente. Santo Amon vivia na maior austeridade. Quando chegou ao deserto, costumava comer pão e água uma só vez ao dia; ao fim da vida, só comia a cada três ou quatro dias.


Entre os muitos milagres que operou, Santo Atanásio cita um em sua “Vida de Santo Antão”. Em certa ocasião, quando Santo Amon se dispunha a atravessar o rio em companhia de seu discípulo Teodoro, encontrou que as águas estavam muito cheias. Seu discípulo retirou-se um pouco para se despir. Mas Santo Amon sentia sempre repugnância em se despir para atravessar o rio, mesmo quando estava só, e não se decidia a tirar suas vestes. Subitamente foi transportado de modo milagroso à outra margem. Quando Teodoro chegou por sua vez e viu que seu mestre não estava molhado, perguntou-lhe o que havia acontecido e Santo Amon não teve outro remédio senão confessar o milagre, embora o tenha obrigado a prometer que não o diria a ninguém até depois de sua morte. Santo Amon morreu aos sessenta e dois anos. Santo Antão, que se achava então a treze dias de distância, soube que seu amigo havia morrido porque teve uma visão na qual presenciou a ascensão de sua alma ao Céu.


Os dados que possuímos provêm principalmente da História Lausiaca de Paládio; além disso, a História monachorum cita um ou dois milagres. O texto grego deste último documento foi editado por Preuschen em sua obra Palladius und Rufinus (1897). Veja-se Acta Sanctorum, outubro, vol. II; e Schiwietz, Das morgenländische Mönchtum, vol. I, p. 94. [2]


Referência:


  1. Butler, Alban. Vida dos Santos, vol. 4, pp. 24-35.

  2. Ibid. pp. 35-37.

Notas:


a. Segundo a tradição, Jesus Cristo apareceu a São Francisco na capelinha da Porciúncula. Por causa da aparição, Honório III concedeu indulgência plenária a quem visitasse a capela em um dia determinado do ano (atualmente 2 de agosto, “toties quoties”). Muito se tem discutido se tal indulgência foi concedida na época de São Francisco, mas é certo que então não se usava o método de sair da capela e voltar a entrar para lucrar uma nova indulgência. Como escrevia Nicolau de Lira, “isso é mais ridículo que devoto”. E outros teólogos da Idade Média opinavam como ele.



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