OS MÁRTIRES DE DAMASCO e a Vida dos Sete Irmãos e Santa felicidade, Mártires (10 de julho)
- Sacra Traditio

- 10 de jul.
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OS MÁRTIRES DE DAMASCO (1860 d.C.)

O conflito do Líbano de 1860 foi o ápice de uma revolta camponesa que começou no norte do Líbano como uma rebelião de camponeses maronitas contra seus senhores drusos. A rebelião rapidamente se espalhou para o sul do país, onde assumiu um caráter sectário mais violento: os drusos, com apoio de muçulmanos sunitas e de autoridades otomanas locais, voltaram-se contra a população cristã. Entre 10 mil e 20 mil cristãos foram massacrados pela plebe drusa e por grupos muçulmanos. Cerca de 380 vilarejos cristãos e 560 igrejas foram destruídas.
Após a Guerra da Crimeia, a Assembleia Francesa exigiu certas reformas ao Império Otomano, particularmente no tocante à tolerância às minorias cristãs. Em 1856, o sultão publicou um decreto segundo o qual todos os súditos do império, sem distinção de raça ou religião, ficavam em pé de igualdade em matéria de impostos e com direito a ocupar cargos públicos. Isso constituiu um ultraje aos sentimentos dos maometanos que, durante doze séculos, haviam considerado as comunidades cristãs como “guetos” de raças inferiores excluídas da lei, às quais o decreto do sultão colocava em pé de igualdade com os filhos do profeta. Por outro lado, as notícias do motim da Índia apenas aumentaram o ressentimento dos maometanos. Os turcos, particularmente o bajá Khursud, governador de Beirute, incitaram secretamente os muçulmanos da Síria e, em 1860, a conflagração explodiu em Bait Mari. O estopim foi uma briga entre um druso (muçulmano de uma seita do Líbano) e um jovem cristão, pertencente ao importante rito católico maronita. Os maronitas sofreram mais que os demais católicos nessa perseguição. Quando o massacre começou, os drusos estavam armados, enquanto os cristãos haviam sido desarmados pelas autoridades turcas sob o pretexto de restaurar a paz. De 30 de maio a 26 de junho, os drusos saquearam e incendiaram todas as aldeias maronitas do centro e sul do Líbano, e assassinaram, mutilaram ou violentaram cerca de 6.000 cristãos. Cinco jesuítas foram estrangulados em Zahleh; em Dair-al-Kamar, o abade do mosteiro maronita foi esfolado vivo e vinte monges foram mortos a machadadas. Khursud então dirigiu-se ao distrito com 600 soldados; mas se contentou em disparar um tiro de canhão e, depois, deixou seus homens participarem do massacre. Em 9 de julho, o motim chegou a Damasco. O governador, bajá Ahmed, não moveu um dedo para impedir a matança; em contrapartida, o nobre emir argelino Abd-al-Kadar, grande defensor do Islã, opôs-se abertamente a seus correligionários e deu abrigo a 1.500 cristãos, entre os quais alguns europeus. As vítimas do terror e da violência chegaram, em três dias, a vários milhares; certamente houve mais de 3.000 mortos, sem contar mulheres e crianças. Oito frades menores e três leigos maronitas foram beatificados em 1926, graças às “circunstâncias particularmente claras de sua morte e ao testemunho dos milagres com que Deus os distinguiu”.
Quando a turba invadiu o bairro da cidade onde se situava o convento franciscano, o padre guardião deu abrigo a todas as crianças e alguns cristãos, exortando-os a permanecer firmes na fé. Os refugiados cantaram as ladainhas dos santos diante do Santíssimo Sacramento e receberam a absolvição e a comunhão. O convento era uma espécie de fortaleza muito bem protegida; provavelmente, os cristãos teriam se salvado, se um traidor — que havia recebido muitos benefícios dos franciscanos — não tivesse guiado a turba até uma porta traseira disfarçada.

O BEATO MANUEL RUIZ, guardião do convento, era um espanhol de origem humilde, nascido em Santander em 1804. Quando a turba penetrou no mosteiro, na noite de 9 de julho de 1860, o Pe. Ruiz correu à capela e consumiu o Santíssimo Sacramento; depois, ajoelhou-se diante do altar para esperar a morte. A turba o agarrou, gritando: “Confessa-te, confessa-te!” (isto é, confessa que Alá é Deus e Maomé seu profeta). O beato respondeu: “Sou cristão e morrerei como cristão”. Em seguida, reclinou a cabeça sobre o altar e ali morreu decapitado por um machado.
Todos os outros frades também eram espanhóis, exceto o BEATO ENGELBERTO KOLLAND, que era austríaco. Após quatro anos no seminário de sua diocese, fora dispensado por seu caráter inquieto e vivaz. Mais tarde, foi admitido pelos franciscanos e passou seus anos de ministério no convento de Damasco. Naquela noite, refugiou-se no terraço e alguém cobriu seu hábito com um véu feminino; mas a turba o reconheceu pelas sandálias e o arrastou até o pátio. Como se recusasse a apostatar, foi assassinado de imediato. O BEATO CARMELO VOLTA perdeu os sentidos com um golpe na cabeça. Uma hora depois, dois maometanos amigos seus lhe ofereceram abrigo em casa, sob condição de que renunciasse à fé. O padre recusou e seus amigos o mataram. O BEATO NICANOR ASCANIO havia chegado à Síria no ano anterior; se o Pe. Ruiz não lhe tivesse negado permissão de partir, julgando perigosa a viagem, ele teria estado em Jerusalém e escapado da matança. O BEATO PEDRO SOLER iniciou seu ministério como missionário numa fábrica de Cuevas. Dois meninos que o ouviram recusar a apostasia e presenciaram seu assassinato deram testemunho no processo de beatificação. O BEATO NICOLÁS ALBERCA, com apenas trinta anos, caiu sob balas em um corredor do convento. Os outros dois mártires franciscanos eram irmãos leigos. O BEATO FRANCISCO PINAZO havia sido "pastor" na juventude. Traído pela noiva, tornou-se irmão leigo da terceira ordem regular, em Huelva; mais tarde, foi admitido na primeira ordem. O BEATO JOÃO JACOBO FERNÁNDEZ tomou o hábito em Hebron e viveu na Espanha até 1857. Ambos os irmãos haviam se escondido na parte superior da torre da igreja do convento. Os muçulmanos os encontraram e os lançaram do balcão ao pátio. O irmão Francisco morreu instantaneamente; o irmão João agonizou toda a noite até ser degolado por um soldado turco ao amanhecer.
Quase todos os leigos que estavam no convento escaparam com vida. Mas três maronitas pereceram e foram beatificados com os franciscanos. Os BEATOS FRANCISCO, ABDUL-MUTI e RAFAEL MASABKI eram irmãos. O mais velho, Francisco, com cerca de setenta anos, era pai de família, rico e influente. Muti, viúvo, havia se retirado do comércio para viver com o irmão e ajudava os franciscanos na instrução. Rafael, o mais jovem, era solteiro; após trabalhar com o irmão Francisco, tornou-se uma espécie de sacristão do convento. A beatificação desses três mártires é particularmente notável, pois o processo foi concluído em menos de seis meses. A causa dos franciscanos havia sido introduzida em 1885; mas a dos irmãos Masabki apenas em 1926, por iniciativa de Mons. Giannini, delegado apostólico na Síria. Felizmente, o bispo maronita de Damasco possuía em seus arquivos todos os documentos necessários, de modo que a beatificação dos três irmãos ocorreu junto à dos franciscanos, em 10 de outubro de 1926.
Mais detalhes podem ser encontrados em H. Lammens, La Syrie (1921), vol. II, pp. 180ss; P. Paoli, Il beato Emmanuele Ruiz... (1926); P. Seeböck, P. Engelbert Kolland (1904); e C. Salotti, L'eroismo di tre martiri maroniti (1926). Nos Anais da Propagação da Fé (1860), pp. 308-326, há um relato geral do levante. [1]
OS SETE IRMÃOS E SANTA FELICIDADE, MÁRTIRES (Século II)

A festa de Santa Felicidade, viúva e mártir, celebra-se no dia 23 de novembro. No entanto, pareceu-nos justo falar dela ao mesmo tempo que de seus sete filhos. Segundo a lenda, Felicidade era uma nobre cristã que se havia consagrado a Deus em sua viuvez e vivia dedicada à oração e às obras de caridade. Seu exemplo e o de sua família converteram numerosos idólatras à fé. Isso enfureceu os sacerdotes pagãos, que se queixaram ao imperador Antonino Pio de que as numerosas conversões realizadas por Felicidade provocariam a cólera dos deuses e, como consequência, a cidade e todo o país sofreriam terrível desolação. O imperador deixou o caso nas mãos de Públio, prefeito de Roma, que mandou que a santa e seus filhos comparecessem diante dele. Tomou Felicidade à parte e tentou, por todos os meios, induzi-la a oferecer sacrifícios aos deuses, para não se ver obrigado a castigar ela e seus filhos. Mas a santa respondeu: “Não tentes me amedrontar com tuas ameaças nem me conquistar com teus elogios, pois o Espírito de Deus, que habita em mim, não permitirá que me venças, mas me fará sair vitoriosa de todos os teus ataques.” Públio replicou: “Infeliz de ti! Se queres morrer, morre então, mas não mates teus filhos!” “Meus filhos, respondeu Felicidade, viverão eternamente se permanecerem fiéis à fé; mas se oferecerem sacrifícios aos ídolos, os espera a morte eterna.” No dia seguinte, o prefeito mandou chamar novamente Felicidade e seus filhos e disse a ela: “Tem piedade de teus filhos, Felicidade, pois estão na flor da juventude”. A santa replicou: “Tua piedade é ímpia, e tuas palavras, cruéis”. Em seguida, voltou-se para seus filhos e lhes disse: “Meus filhos, levantai os olhos ao céu, onde vos esperam Jesus Cristo e seus santos. Permanecei fiéis ao seu amor e lutai valentemente por vossas almas”. Públio encolerizou-se ao ouvir tais palavras e replicou com raiva: “É uma insolência que fales assim a teus filhos na minha presença, tanto quanto tua desobediência às ordens do soberano; portanto, serás castigada”. Mandou então que a açoitem.
O prefeito chamou então, separadamente, cada um dos jovens e tentou, com promessas e ameaças, fazê-los adorar os deuses. Como todos recusaram, ordenou que fossem açoitados e trancados num calabouço. O prefeito informou o caso ao imperador, que mandou que fossem julgados por juízes diferentes e condenados a diferentes tipos de morte. Genaro morreu dilacerado pelos açoites; Félix e Filipe pereceram a golpes de malho; Silvano foi lançado ao Tibre; Alexandre, Vital e Marcial conquistaram a coroa pelo fio da espada. Também a mãe foi decapitada, depois de ter visto morrer seus filhos.
A propósito da morte de Santa Felicidade, Santo Agostinho diz: “O espetáculo que se apresenta aos olhos de nossa fé é magnífico. Ouvimos e vimos com a imaginação essa mãe que, contra todos os seus instintos humanos, escolhe ver seus filhos perecerem diante dela. Mas Felicidade não abandonou seus filhos, e sim os enviou à frente, porque considerava a morte não como fim, mas como início da vida. Esses mártires renunciaram a uma existência que deveria necessariamente acabar, para passar a uma vida que jamais terá fim. Mas Felicidade não se contentou em ver seus filhos morrerem, mas os encorajou a isso e, ao fazê-lo, fez com que sua coragem fosse ainda mais fecunda que seu seio. Ao vê-los lutar, lutou com eles, e a vitória de cada um de seus filhos foi sua própria vitória”. São Gregório Magno pregou uma homilia no dia da festa de Santa Felicidade, na igreja erguida sobre o túmulo da santa na Via Salária. Nessa homilia, disse que Felicidade, “que tinha sete filhos, temia que algum lhe sobrevivesse, como outras mães temem sobreviver a seus filhos. Seu martírio foi maior, pois ao ver morrer todos os seus filhos, sofreu o martírio em cada um deles. Felicidade foi a última a morrer; mas desde o primeiro momento sofreu, de tal forma que seu martírio começou com o do primeiro de seus filhos e terminou com sua própria morte. Assim, conquistou não só sua própria coroa, mas também a de todos os seus filhos. Ao presenciar seus tormentos, permaneceu constante, sofreu porque era mãe, mas regozijou-se porque possuía a esperança. Em Santa Felicidade, a fé triunfou da carne e do sangue, quando em nós ela não é capaz de vencer as paixões e arrancar nosso coração deste mundo corrompido.”
Apesar da eloquência de Santo Agostinho e de São Gregório, do que disse Alban Butler e, não obstante o valor das lições que extraem deste martírio, não se pode considerar o fato como histórico. Está fora de dúvida que uma mulher chamada Felicidade sofreu o martírio e foi sepultada no cemitério de Máximo, na Via Salária. A festa dessa mártir era e é celebrada no dia 23 de novembro. Mas apenas umas “atas” de valor histórico muito duvidoso afirmam que os “Sete Irmãos” eram seus filhos; na verdade, nem sequer se sabe se eram irmãos. Pelo menos desde meados do século V, comemorava-se em 10 de julho o triunfo de sete mártires. Dois deles, Félix e Filipe, foram sepultados no cemitério de Priscila; Marcial, Vital e Alexandre, no cemitério “Jordanorum”; Genaro, no cemitério de Pretextato, onde de Rossi descobriu, em 1863, uma capela decorada com afrescos e uma inscrição em que se invocava esse santo; Silano foi sepultado na catacumba de Máximo. Talvez a origem da lenda de que esses sete mártires eram filhos de Santa Felicidade tenha sido o fato de que a tumba de Silano (ou Silvano) estava junto à da referida santa.
No final do século passado, muito se discutiu sobre Santa Felicidade e seus sete filhos. Embora as atas, como dissemos antes, sejam muito posteriores e de autoridade duvidosa, e embora haja razões para suspeitar que o relato foi inspirado na narrativa bíblica da Mãe dos Macabeus, é certo, no entanto, que existia um culto muito antigo, segundo o Calendário Filocaliano, o epitáfio de São Dâmaso e o Hieronymianum. O texto das atas pode ser consultado nas Acta Sincera de Ruinart, assim como nas edições mais modernas feitas por Doulcet e Künstle. Entre as críticas mais destrutivas, conta-se a de J. Führer, Ein Beitrag zur Lösung der Felicitas-Frage (1890), e o folheto que o mesmo autor escreveu posteriormente para responder aos argumentos de Künstle. Em favor da lenda, cf. o artigo de Duchesne no Bulletin Critique, 1890, p. 425, e o artigo detalhadíssimo de Leclercq no DAC, vol. V, cols. 1259–1298. O Pe. Delehaye voltou à questão no CMH (pp. 362–364) e em Étude sur le légendier romain (1936), pp. 116–123; esse autor conclui que é indubitável que um hagiógrafo inventou que os sete mártires do dia 10 de julho eram irmãos para criar um paralelo cristão à narrativa bíblica dos Macabeus (1º de agosto).* [2]
Referência:
Butler, Alban. Vida dos Santos, vol. 3, pp. 71–73.
Ibid. pp. 65-67.
NOTA:
* Embora historicamente possam faltar provas documentais, durante séculos a Igreja celebrou com devoção a festa dos Sete Santos Mártires junto com Santa Felicidade como sua mãe. Além disso, testemunhos de grande peso, como os de Santo Agostinho e São Gregório Magno, atestam essa tradição.


























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