Comemoração de Todos Os Fiéis Defuntos e a Vida de São Marciano e São Victoriano, Mártir (2 de novembro)
- Sacra Traditio

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A Igreja de Cristo compõe-se da Igreja Triunfante, no Céu, da Igreja Militante, na Terra, e da Igreja Padecente, no Purgatório. Nosso amor deve estender-se a todos os membros de Cristo, pois esse amor por Ele nos une a todo o Seu Corpo Místico e nos leva a compartilhar as dores e alegrias de todos os Seus membros. O dogma da comunhão dos santos supõe a comunicação de certas boas obras e a existência de uma relação entre todos os membros de Cristo. Com os santos do Céu estamos unidos na gratidão e no louvor pela coroa que Deus lhes concedeu, assim como no fruto de sua intercessão por nós. A Festa de Todos os Santos está precisamente consagrada a celebrar nossa comunhão com os eleitos do Céu. Na celebração desta data, a Igreja Militante sublinha a comunhão com a Igreja Padecente, quando implora a divina misericórdia em favor das almas do Purgatório. Por sua vez, as almas do Purgatório certamente rezam por nós, embora a Igreja jamais recorra à sua intercessão nas orações da liturgia, porque a prática dos primeiros cristãos e a tradição não falam expressamente de tal intercessão. “É coisa boa e santa orar pelos mortos” (1 Mac 12,46). É coisa santa porque é agradável a Deus, a cujos olhos não pode haver sacrifício mais honroso e doce que o sacrifício da caridade e compaixão espirituais. As almas do Purgatório são herdeiras do Céu, seguras de alcançá-lo, e seus nomes estão escritos nele. Mas antes, devem purificar-se totalmente, sofrendo com paciência as penas merecidas por seus pecados. A aversão que Deus tem até pelo menor pecado é tão grande, que Sua infinita justiça e santidade não podem suportar nenhuma mancha. Mas a misericórdia de Deus move-nos a ajudar, com caridade, as almas do Purgatório, que são nossas irmãs em Jesus Cristo. Se a caridade compassiva para com os que sofrem, mesmo os que menos a merecem, é um dos principais elementos do espírito cristão, quanto mais o será para com aqueles que estão em necessidade espiritual e carecem de meios para sair dela, sobretudo se considerarmos que talvez estejamos unidos a eles por laços de parentesco ou amizade?
O costume de oferecer o Santo Sacrifício [da Missa] por um defunto em particular existia muito antes da instituição da Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos. O primeiro documento que fala claramente desta comemoração data de meados do século IX, quando os mosteiros começaram a lembrar coletivamente, em diversas datas, seus membros e benfeitores falecidos. No início do mesmo século, São Amalário já estabelecia uma relação entre a Festa de Todos os Santos e a Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos, pois escrevia em sua obra De ordine antiphonariz:
“Depois do ofício dos santos, coloquei o dos defuntos, já que muitos deles não vão diretamente reunir-se aos Bem-Aventurados do Céu.”

É muito possível que Santo Odilon de Cluny tenha recordado esse trecho dois séculos depois, ao ordenar que todos os mosteiros sob sua direção comemorassem, no dia 2 de novembro, todos os fiéis defuntos, recitando o ofício dos mortos e celebrando Missas de Réquiem. De todo modo, como dissemos antes, já então estava muito difundida a ideia de uma comemoração coletiva dos defuntos. Por exemplo, no ano 800, os conventos de São Galo e Reichenau estabeleceram um acordo mútuo para orar conjuntamente pelos defuntos de ambos os mosteiros. Além de orar por cada falecido no momento de sua morte, ambas as comunidades decidiram orar, a cada ano, no dia 14 de novembro, por todos os religiosos ali falecidos. Cada sacerdote devia celebrar três Missas, e os que não eram sacerdotes deviam recitar o saltério inteiro. É digno de nota que no dia 14 de novembro começava na Irlanda a chamada “Quaresma de Moisés”, e que o mosteiro de São Galo havia sido fundado por monges irlandeses.
Rodolfo Glaber e outros cronistas posteriores narram a estranha história de um monge que ouviu os gritos de raiva dos demônios, que se queixavam de que as orações dos monges de Cluny lhes arrancavam das mãos as almas que atormentavam. Diz-se que, ao saber disso, São Odilon decidiu publicar o famoso decreto que acabamos de mencionar; mas o texto do decreto não faz alusão alguma a essa lenda, dizendo simplesmente que, “como a festa de Todos os Santos já se celebrava em toda a Igreja, deviam os monges comemorar com carinho e afeto todos aqueles que haviam morrido desde o princípio até o fim do mundo.” Possuímos um relato detalhado da aplicação desse decreto, ainda em vida de Santo Odilon, no mosteiro de Farfa, perto de Espoleto. Aparentemente, o costume difundiu-se amplamente e com rapidez, embora não haja documento pontifício que o tenha estendido a toda a cristandade. Por outro lado, a Commemoratio animarum de 2 de novembro não se encontra comumente nos calendários e martirológios senão dois séculos mais tarde. Pode-se ilustrar bem isso com o caso de Cantuária: por volta de 1075, o arcebispo Lanfranco promulgou decretos obrigando os monges beneditinos à Missa Solene de Réquiem no dia 2 de novembro, determinando que, na véspera, os sinos fossem tocados e certos ritos observados. Contudo, embora existam quatro ou cinco calendários de Cantuária dos séculos XII e XIII, nenhum menciona tal celebração. Em contrapartida, no martirológio “Protádio”, composto em Besançon, em meados do século XI, fala-se claramente da solenidade do Dia dos Fiéis Defuntos.

Parece certo que o privilégio que tinham desde muito tempo os sacerdotes na Espanha e em seus domínios de celebrar três Missas no Dia dos Fiéis Defuntos originou-se no mosteiro dos dominicanos de Valência, onde já existia nos primeiros anos do século XV. Nesse mosteiro estavam sepultadas muitas pessoas notáveis, de modo que só era possível satisfazer à grande demanda de Missas encomendadas por ocasião do dia dos defuntos permitindo aos frades celebrar três nesse dia. Ao que parece, as autoridades locais começaram por tolerar esse abuso, que mais tarde se converteu em costume aceito. Finalmente, Bento XIV ratificou essa prática e a estendeu a todo o reino, em 1748. Em 1915, durante a guerra mundial, Bento XV tornou o privilégio extensivo a toda a Igreja do Ocidente. Os armênios comemoram especialmente os defuntos no domingo de Páscoa, o que constitui um símbolo muito belo.
Sobre a questão geral da comemoração de todos os fiéis defuntos, cf. Cabrol, em D.A.C., vol. V, cc. 1419-1420; e Leclercq, na mesma obra, vol. IV, cc. 427-456, e vol. XII, cc. 34-38. Veja-se também Kellner, Heortology, pp. 326-328; Schuster, The Sacramentary, vol. V, pp. 213-231; e H. Thurston, The Memory of our Dead, pp. 101-134 e 224-241. Encontram-se certos detalhes de folclore em Bächtold-Stäubli, Handwörterbuch des deutschen Aberglaubens, vol. I, pp. 267-273. Sobre os calendários de Cantuária, cf. E. Bishop, The Bosworth Psalter, pp. 68-69, 113. Sobre a questão na Espanha, veja-se Villanueva, Viaje literario, vol. I, pp. 5 ss. Quanto à Quaresma de Moisés, cf. Analecta Bollandiana, vol. IX (1941), p. 234, n. 3; e J. Ryan, Irish Monasticism (1931), pp. 392-393.1

São Jerônimo fala em termos elogiosos sobre este exegeta. Alban Butler resume suas palavras e diz que “as obras de Victorino eram sublimes, embora seu latim não fosse muito bom, pois o autor nascera na Grécia”. São Victorino já era retórico quando foi eleito bispo de Pettau, no norte da Panônia. Escreveu comentários sobre vários livros do Antigo e do Novo Testamento. São Jerônimo costumava citá-los, mas não sem matizar a boa opinião que tinha do bispo. São Victorino combateu diversas heresias de seu tempo, mas ele próprio foi acusado de “milenarismo”, isto é, de esperar que no ano 1000 Cristo estabeleceria Seu Reino na Terra. Diz-se que o santo bispo foi martirizado durante a perseguição de Diocleciano. Em certa época, acreditou-se que ele havia sido o primeiro bispo de Poitiers, devido a uma latinização errônea do nome de sua diocese.
Não se conservam as atas do martírio de São Victorino; o pouco que sabemos sobre ele provém de certas referências ocasionais encontradas nas obras de São Jerônimo, Optato de Milevi e Cassiodoro. Veja-se Acta Sanctorum, novembro, vol. I. Ao que parece, o Hieronymianum não mencionava este santo; mas Floro de Lyon supunha que a comemoração de São Vítor, em 2 de novembro, referia-se a ele. Veja-se Quentin, Martyrologes historiques, pp. 310 e 380; e Bardenhewer, Geschichte der altkirchlichen Literatur, 2ª edição, vol. II, pp. 657-663. 2

São Marciano nasceu em Cirro, na Síria. Seu pai pertencia a uma família patrícia. Marciano abandonou a casa paterna e partiu de sua pátria. Como não gostava de fazer as coisas pela metade, retirou-se para um deserto entre Antioquia e o Eufrates. Ali escolheu o canto mais escondido e se fechou em uma estreita cela, tão baixa e tão pequena, que não podia ficar de pé nem deitado sem se encolher. Tal solidão era para ele como um paraíso, pois podia consagrar-se inteiramente ao canto dos Salmos, à leitura espiritual, à oração e ao trabalho. Alimentava-se apenas de pão e, mesmo assim, em pequena quantidade; no entanto, jamais passava o dia inteiro sem comer, pois queria ter forças para fazer o que Deus lhe pedia. A luz sobrenatural que recebia na contemplação lhe concedia amplo conhecimento das grandes verdades e mistérios da fé. Apesar de seu grande desejo de viver ignorado pelos homens, sua fama chegou a outros países e, por fim, teve de aceitar como discípulos Eusébio e Agapito. Com o tempo, o número de seus discípulos aumentou, e ele nomeou Eusébio como abade. Certa vez, recebeu a visita de São Flaviano, patriarca de Antioquia, e de outros bispos, que lhe pediram uma exortação, como era seu costume. A dignidade de seus ouvintes impressionou Marciano, que por alguns momentos não soube o que dizer. Quando os bispos insistiram para que falasse, ele lhes disse:
“Deus nos fala a cada instante por meio das criaturas e do universo que nos cerca. Fala-nos também pelo seu Evangelho, no qual nos ensina a cumprir nosso dever para com os outros e conosco mesmos. Que outra coisa poderia eu dizer-vos?”
São Marciano realizou vários milagres, mas sua fama de taumaturgo o incomodava profundamente, de modo que nunca dava atenção àqueles que recorriam à sua intercessão para obter um milagre. Assim, certa vez, quando um habitante de Beréia lhe pediu que abençoasse um pouco de azeite para curar sua filha enferma, o santo recusou terminantemente; contudo, a doente recuperou a saúde naquele mesmo instante. Marciano viveu até idade muito avançada. Nos últimos anos, sofreu muito por causa da insistência dos que queriam conservar seu corpo após a morte. Alguns deles, entre os quais se encontrava seu sobrinho Alípio, chegaram inclusive a construir capelas em diferentes lugares para lhe dar sepultura.
São Marciano resolveu o problema pedindo a Eusébio que o sepultasse em um local secreto. O lugar de sua sepultura só foi descoberto cinquenta anos depois de sua morte. Então, suas relíquias foram trasladadas para um sítio que se converteu em lugar de peregrinação.
Tudo o que sabemos sobre São Marciano procede da História Religiosa de Teodoreto. Pode-se ver o texto grego, com tradução latina comentada, em Acta Sanctorum, novembro, vol. I.3
Referência:
1. Butler, Alban. Vida dos Santos, vol. 4, pp. 245-247.
2. Ibid. pp. 247-248.
3. Ibid. pp. 248-249.


























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