Os Mártires da Indochina, II e a Vida de São Leonardo de Noblac (6 de novembro)
- Sacra Traditio

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Embora São Leonardo tenha sido um dos santos mais populares no Ocidente da Europa no fim da Idade Média, seu nome só começou a ser conhecido por volta do século XI, quando surgiu uma biografia sua sem valor histórico. Segundo essa biografia, Leonardo era filho de um nobre franco convertido ao cristianismo por São Remígio. Clóvis I, seu padrinho de batismo, ofereceu-lhe uma sede episcopal, mas Leonardo recusou. Preferiu tomar o hábito no mosteiro de Micy, perto de Orléans. Depois de algum tempo, desejoso de maior solidão, retirou-se para uma floresta próxima de Langres, onde construiu uma cela. Aí vivia inteiramente só na presença de Deus, alimentando-se apenas das frutas e verduras que cultivava. Certo dia, Clóvis foi caçar naquelas paragens, e sua esposa começou a sentir as dores de um parto difícil. Contudo, a rainha deu à luz felizmente, graças às orações de São Leonardo. Em agradecimento, Clóvis prometeu dar-lhe todas as terras que pudesse percorrer em uma noite sobre o passo de seu asno. São Leonardo fundou em suas vastas terras uma comunidade que floresceu grandemente com o tempo. O mosteiro, chamado antigamente de abadia de Noblac, é hoje conhecido como São Leonardo. O santo evangelizou as regiões vizinhas e, segundo se diz, morreu ali em meados do século VI, sendo muito venerado por suas virtudes e milagres.
A partir do século XI, a devoção a São Leonardo espalhou-se amplamente, sobretudo no noroeste e centro da Europa. Seu nome aparece em muitos calendários da Inglaterra, onde várias igrejas lhe são dedicadas. No século XIII, sua Festa em Worcester era quase dia de preceito, sendo permitidos apenas certos trabalhos, como o de arar a terra. A igreja de Noblac tornou-se um importante centro de peregrinação. São Leonardo foi considerado Patrono das Parturientes e dos Prisioneiros de Guerra, pois, segundo a lenda, Clóvis prometera libertar todos os prisioneiros visitados pelo santo. Do século XIV ao XVIII, em uma única cidade da Baviera, atribuíram-se à sua intercessão mais de 4.000 curas. Hoje resta apenas uma devoção popular local e a celebração de sua Festa em Limoges, Munique e outros lugares.

O artigo sobre São Leonardo nos Acta Sanctorum (nov., vol. 11) é notavelmente completo e sério, escrito em 1910 pelo Pe. Alberto Poncelet, especialista em hagiografia merovíngia e carolíngia. B. Krusch já havia feito uma edição crítica da biografia latina em MGH, Scriptores Merov., vol. III; os bolandistas também publicaram o texto e acrescentaram uma longa série de milagres posteriores. Poncelet concorda com Krusch que a biografia foi composta por volta de 1025 (certamente não antes de 1017) e que, por si só, não basta para provar a existência real do santo. Não há inscrições, martirológios, calendários nem igrejas anteriores ao século XI com seu nome. Provavelmente a devoção a São Leonardo como patrono dos prisioneiros cresceu após Boemundo de Antioquia, capturado pelos muçulmanos, ter sido libertado em 1103 e peregrinado a Noblac em agradecimento, oferecendo um ex-voto (Analecta Bollandiana, vol. XXXI, 1912, pp. 24–44). Em 1803, o cônego Arbellot publicou uma biografia em francês; existem outras, sem sentido crítico. G. Kurth discute em Clovis (vol. II, pp. 167 e 259–260) os anacronismos da vida de São Leonardo. Diversos autores escreveram sobre o folclore e a devoção popular ligada ao santo, como W. Hay (Volkstumliche, 1932, pp. 264–269). Curiosamente, o lugar onde se tinha mais devoção a este santo francês era a Baviera, conforme demonstram G. Shierghofer em Alt-Bayerns Umritte und Leonhardifahrien (1913), Umrittbrauch (1922), Rudolí Kriss em Volkskundliches aus alt-bayerischen Gnadenstatten (1930) e Max Rumpf em Religiöse Volkskunde (1933, p. 166). 1

Os relatos sobre os primeiros mártires contêm tantos dados extravagantes e até puramente inventados que, com frequência, o leitor se perguntará se realmente os mártires sofreram os tormentos refinados que ali se descrevem. Infelizmente, a crueldade latente da humanidade é a mesma em todas as épocas e em todos os lugares. As torturas infligidas aos missionários modernos no Extremo Oriente, das quais existem provas indiscutíveis, podem nos dar uma ideia das crueldades de que eram capazes os tirânicos magistrados da Roma pagã, de Alexandria e de Antioquia.
O Beato TEÓFANES VÉNARD (ou João Teófano Vénard) era um jovem francês que, desde pequeno, sonhava com o martírio e que deu sua vida por Cristo em Tonquim, aos trinta e um anos de idade. Sua história é o melhor exemplo da diabólica crueldade que prevalecia naquelas regiões e das penas que ele e seus companheiros enfrentaram alegremente por Jesus Cristo. O terno afeto que tinha por sua família o levou a escrever numerosas cartas. Além do tom de sinceridade em cada uma de suas palavras, a correspondência de seus companheiros de missão confirma plenamente suas declarações. Teófanes recebeu o subdiaconato em dezembro de 1850 e pediu admissão no Colégio das Missões Estrangeiras de Paris, pois o considerava o melhor caminho para alcançar o martírio. O beato começava assim uma carta à sua irmã, escrita quando acabara de tomar essa decisão:
“Minha querida irmãzinha: Como chorei ao ler tua carta! Sim, eu já sabia perfeitamente a dor que minha decisão causaria a todos vocês, especialmente a ti, minha irmã. Sabe que este passo me custou lágrimas de sangue, pela dor que vos causaria. Ninguém ama mais do que eu a família e a vida familiar. Toda a minha felicidade aqui na terra consistia exatamente nisso. Mas Deus, que nos uniu com os laços do mais terno afeto, quis de mim esse sacrifício.”
Teófanes sempre teve saúde delicada, e uma grave doença quase atrasou sua ordenação. Em setembro de 1852, já sacerdote, partiu para Hong Kong. Ali passou quinze meses estudando o idioma. Em 1854, foi enviado ao Tonquim Ocidental. O novo missionário e seu companheiro, que já estava há algum tempo na missão, chegaram sãos e salvos, mas não sem terem de lutar contra doenças e uma violenta perseguição. O Pe. Teófanes trabalhou incansavelmente durante cinco anos em um distrito que contava com dez mil cristãos fervorosos. A propósito daquela fanática perseguição, escreveu:
“Foi dada a ordem de capturar todos os cristãos e matá-los pelo método que aqui se chama ‘lang-tri’. É uma tortura lenta, que consiste em cortar sucessivamente os pés, as pernas, os dedos das mãos, os braços etc., até que reste apenas o tronco mutilado. Mons. Melchior, O.P., vigário apostólico do distrito oriental de Tonquim, foi capturado e sofreu essa horrível morte em agosto.”
O beato dá muitos detalhes da situação desesperadora em que se encontravam ele e os outros missionários.
“Que pensais da nossa situação? Somos três missionários, um dos quais é bispo. Vivemos, dia e noite, colados uns aos outros, em um recinto de menos de um metro e meio de lado. A luz e o ar entram por três buracos não mais largos que um dedo, abertos na parede de adobe. A boa mulher que nos abriga se encarrega de cobri-los por fora com feixes de palha.”

No dia 30 de novembro de 1860, o Pe. Teófanes foi preso. Passou dois meses encerrado em uma jaula; mas sua bondade impressionou os perseguidores, que não o torturaram. Em uma das cartas escritas desde a jaula, dizia:
“Passo tranquilamente meus últimos dias de prisão. Todos os que me rodeiam são corteses e respeitosos, e muitos me querem bem. Desde o grande mandarim até o último dos soldados lamentam que as leis do país me condenem à morte. Não me torturaram como aos meus irmãos.”
Entretanto, a cena de sua execução foi brutal, devido à crueldade do carrasco, e é interessante e significativo ler o seguinte relato de uma testemunha:
“Assim que os soldados partiram, a multidão se precipitou com trapos, lenços e pedaços de papel para embebê-los no sangue do mártir. Fizeram isso com tal fervor que não restou no local nem um fio da relva manchada de sangue.”
O martírio do Pe. Teófanes teve lugar em 2 de fevereiro de 1861.
Dez anos antes, haviam sido decapitados outros dois alunos do Colégio das Missões Estrangeiras de Paris: os beatos AUGUSTO SCHÖFFLER e João Luís Bonnard. Augusto Schöffler nascera na Lorena. Chegou em 1848 a Tonquim, onde logo aprendeu o idioma o suficiente para ouvir confissões e dar instruções simples. Em 1851, os distúrbios políticos provocaram uma perseguição aos cristãos. O Pe. Schöffler foi preso em 1º de março. Embora não tenha sido torturado, sofreu terrivelmente por causa da forquilha de madeira amarrada ao seu pescoço e das correntes que lhe prenderam os membros, sem falar dos insetos e dos desagradáveis companheiros que encontrou na prisão comum. A execução foi realizada com grande solenidade. A atitude valente do mártir impressionou até seus inimigos.
O Pe. Bonnard chegou a Tonquim em 1850, precisamente quando havia na região uma epidemia de cólera. O missionário trabalhou incansavelmente entre os doentes, ao mesmo tempo em que estudava o idioma. O vigário apostólico, sob cujas ordens estava, expressou-se sobre ele em suas cartas com o mais terno afeto e admiração. Conserva-se uma bela carta do Pe. Bonnard, já condenado à morte, escrita para se despedir de sua família. Foi decapitado em 1º de maio de 1852. Segundo o costume, seus restos foram lançados ao rio em um saco carregado de pedras. No caso do Pe. Schöffler, os cristãos conseguiram recuperar as relíquias.

Outro dos mártires que merece especial menção é o Beato ESTÊVÃO TEODORO CUÉNOT, tanto por ser bispo quanto por ter trabalhado durante muitos anos em condições que teriam feito recuar até os mais ousados. Estêvão Teodoro nasceu em 1802. Fez seus estudos no seminário das Missões Estrangeiras de Paris e chegou a Annam em 1829. Em 1833, estourou uma violenta perseguição. Os superiores do Pe. Cuénot enviaram-no a refugiar-se no Sião com os seminaristas nativos que se preparavam para o sacerdócio. O futuro mártir sofreu por toda parte reveses e decepções, mas nem por isso diminuíram seu valor e sua firmeza, de modo que, em 1835, foi consagrado em Singapura como bispo coadjutor de Dom Taberd. Embora a perseguição continuasse devastando Annam, Dom Cuénot conseguiu penetrar no território. Como precisava viver oculto, seu trabalho era especialmente difícil. Apesar disso, realizou maravilhas: reorganizou os cristãos dispersos e encorajou sacerdotes e catequistas locais. Apesar das circunstâncias adversas, seu zelo contagiante produziu numerosas conversões.
Em quinze anos, Dom Cuénot estabeleceu três vicariatos apostólicos na Cochinchina. Em cada um deles havia cerca de vinte sacerdotes. Deve-se notar que, quando Dom Cuénot foi nomeado vigário apostólico, havia em toda a região apenas uma dúzia de sacerdotes, quase todos idosos e debilitados. Após mais de vinte e cinco anos de episcopado, durante os quais a perseguição jamais cessou, a província de Binh-Dinh, onde os cristãos haviam gozado até então de relativa paz, tornou-se o centro de uma perseguição fanática. O bispo refugiou-se na casa de um pagão, “que o escondeu em uma cela habilmente construída na espessura de uma parede dupla”. Os perseguidores não conseguiram descobrir o esconderijo, mas, ao encontrarem certos objetos que lhe pertenciam, permaneceram de guarda. Dois dias depois, Dom Cuénot, exausto, doente e incapaz de suportar por mais tempo a sede que o consumia, saiu de seu esconderijo. Imediatamente foi preso. Os perseguidores o lançaram em uma estreita jaula na qual tinha de permanecer curvado, e o transportaram assim à presença do chefe da principal localidade do distrito. Embora lhe fosse dada certa liberdade de movimento dentro de uma fortaleza, o mártir faleceu poucos dias depois, vítima de um violento ataque de disenteria. Precisamente quando acabava de morrer, chegou da capital a ordem de decapitá-lo. Um dos mandarins propôs que se executasse a sentença no cadáver, mas os outros dois se opuseram a esse inútil excesso de barbárie.
“A metade dos seminaristas, todos os alunos do colégio menor e todas as religiosas, isto é, cerca de 250 pessoas, caíram nas mãos dos perseguidores. Em sinal de infâmia, marca-se em seus rostos a inscrição ‘ta dao’ (falsa religião). Trazem ao pescoço uma armação de madeira ou uma corrente; alguns trazem ambas. Costuma-se dividi-los em pequenos grupos e enviá-los a diversas localidades, onde são amontoados em estreitas prisões... Correu o rumor de que os habitantes de dois povoados queimaram todos os cristãos para evitar aos guardas o trabalho de vigiá-los; quando os mandarins pediram explicações, disseram que se tratava de um incêndio acidental.”

Assim escrevia o provigário desde Saigon, em janeiro de 1862. O Beato Estêvão Cuénot havia falecido em 14 de novembro do ano anterior. No mesmo mês, foram martirizados outros dois bispos. O Beato JERÔNIMO HERMOSILLA, dominicano espanhol, sucedeu ao Beato Inácio Delgado como vigário apostólico do Tonquim oriental. Quando estourou a perseguição, foi preso pelo mandarim Nguyen. Dom Hermosilla conseguiu escapar e continuou secretamente seu ministério, até que foi delatado por um soldado. Foi preso junto com outros dois dominicanos: os Beatos Valentim Berrio Ochoa, vigário apostólico do Tonquim central, e Pedro Almato. Dom Berrio Ochoa crescera em sua província natal de Biscaia, onde fora aprendiz de carpinteiro, pois sua nobre família estava reduzida à pobreza. Abandonou o ofício para ingressar no seminário. Mais tarde, tomou o hábito de São Domingos, com a expressa condição de que partiria para as missões. Em 1856, chegou a Tonquim. Dezoito meses depois, em consequência do martírio de Dom Sampedro, foi nomeado vigário apostólico do distrito central. Durante a perseguição, um apóstata revelou o local em que se encontrava escondido. O Pe. Pedro Almato, que era catalão, havia trabalhado seis anos na missão, apesar de sua má saúde. Dom Hermosilla tentou fazê-lo cruzar a fronteira da China, mas já era tarde demais. Os três foram decapitados juntos em 1º de novembro de 1861. Era o dia do trigésimo primeiro aniversário do Beato Pedro. Cinco semanas mais tarde, foi executado no mesmo local um terciário leigo, o Beato José Khang.
Os perseguidores empregavam métodos que mais tarde se nos tornariam familiares:
“Os cristãos serão dispersos entre as populações não cristãs. As mulheres serão separadas de seus maridos e os filhos de seus pais. As aldeias cristãs serão destruídas e os bens dos cristãos distribuídos a outros. Todos os cristãos levarão na testa a inscrição: ‘Falsa religião’.”

Entre os mártires da Indochina contam-se os sacerdotes Lourenço Hunc (1856), Pao Loc e João Hoan (1861), o catequista André Nam Thunc (1855), um alto funcionário da corte, chamado Miguel Ho-Dinh-Hy (1857), Marta Wang (1861), que foi surpreendida pelos perseguidores levando cartas dos seminaristas José Shang e Paulo Cheng, que estavam prisioneiros. Esses mártires e seus numerosos companheiros foram beatificados em 1900, 1906 e 1909. Na data de hoje celebra-se a Festa dos Beatos Jerônimo Hermosilla e seus companheiros.
Em 1951, Pio XII beatificou outros vinte e cinco mártires que haviam morrido em Tonquim (atual Vietnã), durante a perseguição de Yu-Duk, entre 1857 e 1862. Os principais deles eram os bispos espanhóis José Sanjurjo e Melchior Sampedro. Pouco antes de sua execução, Dom Sanjurjo escreveu:
“Não tenho casa, nem livros, nem roupas, nem nada. Mas estou em paz e contente. É uma felicidade ser tão pobre como Nosso Senhor, quando disse que o Filho do Homem não tinha onde reclinar a cabeça.”
Todos os mártires deste grupo eram leigos indochineses, exceto quatro. O Beato Vicente Tuong era juiz; os Beatos Pedro Thuan e Domingos Toai, que foram queimados vivos com o Beato Pedro Da em sua cabana de bambu, eram pescadores. No dia 11 de julho falamos de outros mártires da Indochina.
A fonte principal é Vie et Correspondance de J. T. Vénard (1864). Existe uma biografia muito completa escrita por Dom F. Trochu. Lady Herbert traduziu para o inglês uma obra de menor valor. Nos Anais da Propagação da Fé (1852–1853) há um relato detalhado do martírio dos Padres Schöfler e Bonnard; ibid. (1862), pp. 250–260, refere-se ao martírio do Pe. Cuénot. Dom Vindry escreveu uma biografia de J. L. Bonnard em 1876. G. Clementi, Gli otto martiri Tonchinesi O.P. (1906), e A. Bianconi, Vita e martirio dei beati Domenicani (1906), narram o martírio dos dominicanos. Veja-se uma carta do Pe. Estevez em Anais da Propagação da Fé, 1863, pp. 178–204. Veja-se nossa nota bibliográfica dos Mártires da Indochina (11 de julho). 2
Confira "OS MÁRTIRES DA INDOCHINA, PARTE I":
Referência:
1. Butler, Alban. Vida dos Santos, vol. 4, pp. 277-278.
2. Ibid. pp. 281-285.


























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