Vida de São Martinho de Tours e São Menas, Mártir (11 de novembro)
- Sacra Traditio

- 11 de nov.
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O grande São Martinho, glória das Gálias e luz da Igreja do Ocidente no século IV, nasceu em Sabária, na Panônia. Seus pais, que eram pagãos, estabeleceram-se mais tarde em Pavia. Seu pai era oficial do exército, tendo começado como simples soldado. É curioso notar que São Martinho passou à história como “santo militar”. Por ser filho de um veterano, aos quinze anos teve de alistar-se no exército contra sua vontade. Embora ainda não fosse batizado, viveu por vários anos mais como monge do que como soldado. Quando estava aquartelado em Amiens, ocorreu o episódio que o tornou famoso na história e na arte. Num rigoroso inverno, encontrou à porta da cidade um pobre quase nu, tremendo de frio e pedindo esmola aos transeuntes. Vendo que todos o ignoravam, Martinho percebeu que Deus lhe oferecia ocasião de socorrê-lo; mas, como só possuía suas armas e o uniforme, sacou a espada, partiu o manto em dois e deu metade ao mendigo, guardando a outra. Alguns riram dele, vendo-o vestido de modo tão estranho, mas outros se envergonharam de não ter ajudado o pobre. Naquela noite, Martinho viu em sonho Jesus Cristo revestido com o pedaço de manto que havia dado ao mendigo e ouviu-O dizer: “Martinho, embora ainda sejas catecúmeno, cobriste-Me com teu manto.” Sulpício Severo, discípulo e biógrafo do santo, afirma que Martinho se fizera catecúmeno aos dez anos, por iniciativa própria, e que, ao ter essa visão, “voou para receber o batismo”.
Entretanto, não abandonou imediatamente o exército. Após a invasão dos bárbaros, quando se apresentou com seus companheiros diante do general Juliano César para receber sua parte do saque, recusou-a e disse: “Até agora te servi como soldado; doravante, deixa-me servir a Jesus Cristo. Reparte o despojo entre os que vão combater; eu sou soldado de Cristo e não me é lícito lutar.” O general, furioso, acusou-o de covardia. Martinho respondeu que estava disposto a ir no dia seguinte à batalha, na primeira fila e desarmado, em nome de Jesus Cristo. Juliano mandou encarcerá-lo, mas logo se fez um armistício com o inimigo, e Martinho foi dispensado do serviço militar. Dirigiu-se então a Poitiers, onde Santo Hilário era bispo, e o santo doutor o acolheu com alegria entre seus discípulos.[a]

Certa noite, enquanto dormia, Martinho recebeu ordem de partir para sua pátria. Cruzou os Alpes — onde escapou milagrosamente de salteadores —, chegou à Panônia e ali converteu sua mãe e alguns parentes e amigos, embora seu pai permanecesse incrédulo. Na Ilíria, combateu os arianos com tanto zelo que foi publicamente açoitado e expulso da região. Na Itália, soube que os arianos também triunfavam nas Gálias e haviam exilado Santo Hilário; permaneceu, pois, em Milão. Mas o bispo ariano Auxêncio o expulsou da cidade. O santo então retirou-se, com um sacerdote, para a ilha de Gallinária, no golfo de Gênova, onde ficou até que Santo Hilário pôde regressar a Poitiers, no ano 360. Sentindo-se chamado à vida solitária, Martinho recebeu de Hilário algumas terras em Ligugé. Logo outros eremitas se reuniram a ele, formando — segundo a tradição — a primeira comunidade monástica das Gálias, que se tornou um grande mosteiro existente até 1607 e restaurado pelos beneditinos de Solesmes em 1852. São Martinho ali viveu dez anos, dirigindo seus discípulos e pregando na região, realizando muitos milagres. Por volta de 371, os habitantes de Tours decidiram elegê-lo bispo; como ele se recusasse, chamaram-no sob o pretexto de visitar um enfermo e, aproveitando-se da ocasião, levaram-no à força à igreja. Alguns bispos convidados para a eleição alegaram que a aparência humilde e simples de Martinho o tornava indigno do cargo, mas o povo e o clero não lhes deram ouvidos.
São Martinho continuou a viver como antes. No início, fixou residência em uma cela próxima à igreja, mas, como as visitas o interrompessem constantemente, acabou por retirar-se para o que mais tarde seria a famosa abadia de Marmoutier. O lugar, então deserto, era limitado de um lado por um íngreme penhasco e do outro por um afluente do Loire. Pouco tempo depois, já se haviam reunido com São Martinho oitenta monges e não poucas pessoas de alta dignidade. A piedade, os milagres e a zelosa pregação do santo fizeram declinar o paganismo em Tours e em toda a região. São Martinho destruiu muitos templos, árvores sagradas e outros objetos venerados pelos pagãos.

Certa vez, após demolir um templo, mandou derrubar também um pinheiro que se erguia ao lado dele. O sumo sacerdote e outros pagãos aceitaram derrubá-lo por si mesmos, com a condição de que o santo, que tanta confiança tinha no Deus que pregava, se colocasse junto à árvore, no ponto que eles determinassem. Martinho aceitou, e os pagãos o amarraram ao tronco. Quando a árvore estava prestes a cair sobre ele, o santo fez o sinal da cruz e o tronco desviou-se.
Noutra ocasião, enquanto destruía um templo em Autun, um homem o atacou com uma espada. O santo ofereceu o peito, mas o agressor perdeu o equilíbrio, caiu de costas e, tomado de terror, pediu perdão ao bispo. Sulpício Severo narra esses e outros feitos milagrosos, alguns tão extraordinários que o próprio autor reconhece que, já em sua época, não faltavam “homens maus, degenerados e perversos” que se negavam a crer neles. O mesmo biógrafo relata também algumas revelações, visões e profecias com que Deus favoreceu São Martinho. Todos os anos, o santo costumava visitar as paróquias mais distantes de sua diocese, viajando a pé, montado num jumento ou em barca. Segundo seu biógrafo, estendeu seu apostolado da Turena até Chartres, Paris, Autun, Sens e Vienne, onde curou São Paulino de Nola de uma doença nos olhos.
Certa vez, um oficial imperial tirano, chamado Aviciano, chegou a Tours com um grupo de prisioneiros e planejava torturá-los no dia seguinte. São Martinho partiu às pressas de Marmoutier para interceder por eles. Chegou perto da meia-noite e foi imediatamente ao encontro de Aviciano, a quem não deixou em paz até conseguir o perdão dos prisioneiros.
Enquanto São Martinho conquistava almas para Cristo e estendia pacificamente o Seu Reino, os priscilianistas — uma seita gnóstico-maniqueia fundada por Prisciliano — começaram a perturbar a paz nas Gálias e na Espanha. Prisciliano apelou ao imperador Máximo contra a sentença do sínodo de Bordeaux (348), mas Itácio, bispo de Ossónoba, atacou furiosamente o herege e aconselhou o imperador a condená-lo à morte. Nem São Martinho nem Santo Ambrósio de Milão aprovaram a atitude de Itácio, que não apenas pedia a morte de um homem, mas também envolvia o imperador em assuntos próprios da jurisdição eclesiástica. São Martinho exortou Máximo a não condenar os culpados à morte, dizendo que bastava declará-los hereges e excomungados pelos bispos. Mas Itácio, em vez de aceitar o parecer de São Martinho, acusou-o de cumplicidade com a heresia. Sulpício Severo comenta que essa era a tática usual de Itácio contra todos os que levavam uma vida demasiadamente ascética para seu gosto. Máximo prometeu, por respeito a São Martinho, não derramar o sangue dos acusados; contudo, após a partida do santo bispo de Trier, o imperador acabou cedendo e deixou a decisão final nas mãos do prefeito Evódio. Este, ao verificar que Prisciliano e alguns outros eram realmente culpados de certos delitos, mandou decapitá-los. Mais tarde, São Martinho voltou a Trier para interceder tanto pelos priscilianistas espanhóis, ameaçados de uma sangrenta perseguição, quanto por dois partidários do falecido imperador Graciano. Isso o colocou numa situação muito difícil, e ele julgou então justificado manter a comunhão com o partido de Itácio, mas depois teve dúvidas se não teria sido excessivamente indulgente em proceder assim.[b]

São Martinho teve uma revelação acerca de sua morte e a predisse a seus discípulos, que lhe suplicaram com lágrimas nos olhos que não os abandonasse. Então o santo orou assim: “Senhor, se teu povo ainda precisa de mim, estou disposto a continuar trabalhando. Faça-se a tua vontade.” Quando foi acometido pela última enfermidade, São Martinho se encontrava em um canto remoto de sua diocese. Morreu em 8 de novembro do ano 397. O dia 11 de novembro é aquele em que foi sepultado em Tours. Seu sucessor, São Brício, construiu uma capela sobre seu túmulo; mais tarde, foi substituída por uma magnífica basílica. A Revolução Francesa destruiu a basílica seguinte que ali se erguera. A igreja atual se levanta no local onde se encontrava o santuário saqueado pelos huguenotes em 1562. Até essa data, a peregrinação ao túmulo de São Martinho era uma das mais populares da Europa. Na França há muitas igrejas dedicadas a São Martinho, e o mesmo ocorre em outros países. A mais antiga igreja da Inglaterra leva o nome deste santo: trata-se de uma igreja nos arredores de Canterbury, e Beda diz que foi a primeira construída durante a ocupação romana. Se isto for verdade, deve ter tido outro nome no princípio, recebendo o de São Martinho quando Santo Agostinho e seus monges tomaram posse dela. No final do século VII havia pelo menos outras cinco igrejas dedicadas a São Martinho na Grã-Bretanha, entre as quais se contava, naturalmente, a igreja de São Niniano de Whithorn. O nome de São Martinho figura no cânon da missa no “Missal de Bobbio”.
No BHL, há uma lista de sessenta e cinco textos latinos medievais relacionados com São Martinho; naturalmente, a literatura existente sobre ele é imensa. A fonte principal é Sulpício Severo, que visitou São Martinho em Tours, e cujos relatos são muito mais importantes que quaisquer documentos posteriores. Quando São Martinho morreu, Sulpício já havia terminado sua biografia. Algum tempo depois, revisou sua obra e introduziu nela o texto de três longas cartas que havia escrito no intervalo; na última delas descrevia a morte e os funerais do santo. Entrementes, também havia escrito uma crônica geral, cujo capítulo 50 do livro I trata da atuação de São Martinho na controvérsia priscilianista. Finalmente, no ano 404 compôs um diálogo com outros materiais, onde compara São Martinho com os ascetas primitivos e conta algumas anedotas. O texto editado por C. Halm no Corpus de Viena (vol. I, pp. 107-216) não foi superado até hoje; veja-se, entretanto, a seção dedicada a Sulpício Severo no Livro de Armagh, editado pelo professor John Gwyn (1913). Quase um século e meio após a morte de São Martinho, seu sucessor na sé de Tours, São Gregório, fez outra importante contribuição à história de seu venerado predecessor. Infelizmente, as cronologias de Sulpício e Gregório frequentemente divergem. E. Babut aproveitou essas diferenças para fazer uma crítica destrutiva em sua obra intitulada Saint Martin de Tours (1912), que em sua época causou sensação. A resposta detalhada do Pe. Delehaye em Analecta Bollandiana (vol. XXXVIII, 1920, pp. 1-136) é talvez a última palavra sobre o assunto. Outra grande autoridade, C. Julian, chegou a conclusões substancialmente concordes com as de Delehaye (cf. Revue des Études Anciennes, vols. XXIV e XXV, e Histoire de la Gaule, vol. VIII). As biografias e estudos sobre diferentes aspectos da vida de São Martinho são muito numerosos. Veja-se, sobretudo, as obras de A. Lecoy de la Marche, C. H. van Rhijn, P. Ladoué e a utilíssima obra de Paul Monceaux. Sobre São Martinho na arte, cf. Kiünstle, Ikonographie, vol. II, pp. 438–444; e o volume de H. Martin na coleção L’art et les saints. São Martinho também desempenhou um papel muito importante na formação das tradições populares; por exemplo, em muitos ditados franceses figura seu nome. Quanto à França, veja-se Lecoy de la Marche; quanto ao folclore alemão, cf. Bächtold-Stäubli, Handwörterbuch des deutschen Aberglaubens, vol. V, cc. 1708–1725. Sobre a influência de São Martinho na Irlanda, veja-se J. Ryan, Irish Monasticism (1931); e Grosjean, em Analecta Bollandiana, vol. IV (1942), pp. 300–348. Quanto às igrejas dedicadas a São Martinho na Inglaterra, cf. W. Levison, England and the Continent (1946), p. 259. Como prova da devoção a São Martinho existente na Inglaterra na Idade Média, note-se que o calendário do Book of Common Prayer comemora não só sua morte, mas também o dia da trasladação de suas relíquias (4 de julho).1

São Menas era um soldado do exército romano, natural do Egito. Encontrava-se em Cotieu, na Frígia, quando eclodiu a perseguição de Diocleciano. Imediatamente desertou do exército e refugiou-se nas montanhas, onde levou uma vida de oração e penitência. Certa vez, quando se realizavam jogos em Cotieu, o santo saiu de seu retiro e apresentou-se no circo, onde proclamou em alta voz que era cristão. Foi preso e levado diante do governador, o qual, depois de mandá-lo golpear e torturar, condenou-o à decapitação. Os cristãos recuperaram as relíquias do santo e as trasladaram ao Egito. Os milagres realizados junto ao túmulo de São Menas logo transformaram o local em centro de peregrinação. Seu culto difundiu-se amplamente no Oriente. Com o tempo, a lenda foi deformando a história, de modo que São Menas acabou sendo incluído entre os “santos militares”. Naturalmente, atribuíram-lhe os milagres mais absurdos, um dos quais, segundo Tillemont, era “escandaloso no mais alto grau”. (Por sinal, o mesmo milagre também é atribuído aos Santos Cosme e Damião). O Pe. Delehaye opina que o único fato certo sobre São Menas é que era egípcio e sofreu o martírio em sua terra natal. Em sua honra, foram construídas igrejas em Cotieu e em outros lugares, o que deu origem à criação de toda uma série de santos com o mesmo nome, associados a diferentes cidades.
O santuário mais importante de São Menas, onde repousavam suas relíquias, era o de Bumma (Karm Abu-Mina), ao sudeste de Alexandria. Até a invasão dos árabes (século VII), foi o principal local de peregrinação. Dom K. M. Kaufmann empreendeu em 1905 escavações que revelaram a basílica, o mosteiro, as termas e outros edifícios. Foram então encontradas inúmeras relíquias do antigo culto popular ao santo. Por exemplo, havia grande quantidade de frascos marcados com a inscrição “Recordação de São Menas”, nos quais se vendia água de uma fonte próxima; anteriormente, frascos semelhantes haviam sido encontrados na África e na Europa, mas se supunha que continham “óleo de São Menas”, retirado das lâmpadas do santuário. Em 1943, o patriarca ortodoxo de Alexandria, Cristóvão II, escreveu uma encíclica na qual atribuía a salvação do Egito da invasão, após a batalha de El Alamein, “às orações elevadas a Deus pelo santo e glorioso mártir Menas, taumaturgo do Egito”. O patriarca propunha a reconstrução do santuário de São Menas, nas proximidades de El Alamein, como monumento aos caídos.
O Martirológio Romano menciona também neste dia outro São Menas, que viveu como eremita nos Abruzos. Era natural da Ásia Menor, de origem grega. O Papa São Gregório fala de sua santidade e zelo em seus Diálogos.
Como no caso de São Gregório Magno, trata-se aqui de um mártir cuja existência histórica não pode ser posta em dúvida, dado que desde a Antiguidade lhe era tributado culto local e até mundial, mas cuja verdadeira história se perdeu e foi substituída pela lenda. Algum hagiógrafo inventou a lenda primitiva, que foi sendo transmitida às gerações seguintes com infinitas variações e traduzida para numerosos idiomas orientais e ocidentais. Existem três famílias diferentes da versão grega da paixão de São Menas; contudo, os fatos substanciais foram simplesmente tomados da história de outro mártir, cujo nome foi substituído pelo de Menas. Esse mártir é São Górdio, sobre cujo martírio São Basílio pregou um panegírico. Historiadores como Krumbacher, Delehaye, P. Franchi de Cavalieri, K. M. Kaufmann, entre outros, estudaram amplamente São Menas. O fato mais importante é o das escavações realizadas neste século por Dom Kaufmann no local do antigo santuário; o distinto arqueólogo descreveu os resultados de suas pesquisas em seu volume in-folio Die Menas-stadt und das Nationalheiligtum der altchristlichen Ägypter (1910). O Pe. Delehaye escreveu muito sobre o tema. Ver Analecta Bollandiana, vol. XXIX (1910), pp. 117–150; e vol. XLIII, pp. 46–49; Origines du culte des martyrs (1933), pp. 222–223 e passim; Les passions des martyrs et les genres littéraires, pp. 388–389; e CMH, pp. 595–596. Ver também Budge, Texts relating to St. Mena of Egypt (1909); P. Franchi de Cavalieri, em Studi e Testi, vol. XIX (1908), pp. 42–108; e H. Leclercq, em Dictionnaire d’Archéologie Chrétienne, vol. XI, col. 324–397, onde se encontra uma bibliografia extensa. 2
Referências:
1. Butler, Alban. Vida dos Santos, vol. 4, pp. 308-312.
2. Ibid. pp. 312-313.
Notas:
a. Sobre este ponto, a narração de Sulpício Severo apresenta consideráveis dificuldades cronológicas.
b. São Sirício, Papa, censurou tanto o imperador como Itácio por sua atitude no assunto dos priscilianistas. Essa foi a primeira sentença capital imposta por heresia, e o resultado foi que o priscilianismo se difundiu pela Espanha.


























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