Vida de São Abércio de Hierápolis e São Donato de Fiésole (22 de outubro)
- Sacra Traditio

- 22 de out.
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No século II, vivia na Frígia Salutaris certo Abércio Marcelo, que era bispo de Hierápolis. Aos setenta e dois anos de idade, fez uma peregrinação a Roma e, no regresso, passou pela Síria, pela Mesopotâmia e visitou Nísibis. Em todos os lugares encontrou cristãos fervorosos, que haviam sido purificados pelo batismo e se nutriam do Corpo e do Sangue de Cristo. Quando voltou à Frígia, construiu para si um sepulcro no qual mandou colocar uma inscrição que relatava, com termos simbólicos e ininteligíveis para os não cristãos, a viagem que fizera a Roma para “contemplar a majestade” do Pastor universal e onividente.
Um hagiógrafo grego, interpretando essa inscrição a seu modo, escreveu uma biografia de São Abércio. Segundo essa engenhosa narração, o santo bispo converteu, com sua pregação e milagres, tantas pessoas que lhe deram o título de “igual aos Apóstolos”. Sua fama chegou aos ouvidos do imperador Marco Aurélio, que o mandou chamar a Roma, pois sua filha Lucila estava possessa. São Abércio exorcizou com sucesso a jovem e ordenou ao demônio que transportasse, desde o hipódromo romano até sua cidade episcopal, a pedra de um altar, para empregá-la na construção de seu sepulcro. O autor da biografia tomou alguns episódios da vida de outros santos e apresentou, no apêndice de sua obra, o original da inscrição de Abércio.
Os historiadores costumavam considerar o conteúdo da inscrição com a mesma desconfiança que a biografia da qual fazia parte, até que, em 1822, o arqueólogo inglês W. M. Ramsey descobriu em Kelendres, perto de Sínada, uma inscrição datada do ano 216. Era o epitáfio de um certo Alexandre, filho de Antônio; mas os primeiros e os últimos versos eram praticamente uma transcrição dos da inscrição de Abércio. No ano seguinte, Ramsey descobriu nos muros das termas de Hierápolis outros fragmentos que completavam quase totalmente a parte do epitáfio de Abércio que faltava na primeira pedra. Graças a essas duas inscrições e ao texto da biografia de São Abércio, conseguiu-se completar uma inscrição de grande valor. Contudo, nem todos os historiadores admitiam que Abércio fosse cristão; interpretando os símbolos da inscrição de forma muito subjetiva, alguns chegaram a dizer que ele fora um sacerdote de Cibele ou de outro culto sincretista. Finalmente, após inúmeras investigações, chegou-se à conclusão de que o Abércio da inscrição havia sido realmente um bispo cristão. O nome de Abércio figura na liturgia grega desde o século X; também se encontra no Martirológio Romano atual, onde se diz que foi bispo de Hierápolis (sede de São Papias) em vez de Hierápolis. Este último erro procede da biografia grega mencionada acima.1
Segue-se a inscrição completa descoberta por Ramsay:
“Cidadão duma importante cidade, ergui este monumento, quando em vida, a fim de ter, um dia, um lugar para colocar meu corpo. Chama-me Abércio. Sou discípulo dum Santo Pastor, que leva seus rebanhos de ovelhas por montes e vales, que tem dois olhos muito grandes que tudo vêem. Foi quem me ensinou as Escrituras fiéis. Foi quem me enviou a Roma para contemplar a soberana e para ver a rainha vestida de ouro, com calçados de ouro. Lá, vi um povo que leva o selo brilhante. Vi também a planície da Síria e todas as cidades, e Nisiba, para lá do Eufrates. Por toda parte, vi confrades. Eu tinha Paulo por... A fé conduziu-me por toda parte. Por toda a parte, ela me serviu, como alimento, um peixe de fonte, muito grande, puro, pescado por uma virgem pura. Aos amigos, dava-o ela a comer, sem cessar. Ela tem um vinho delicioso, que nos dá com pão. Fiz com que se escrevessem estas coisas, eu, Abércio, com a idade de setenta e dois anos. Que os confrades que as compreendam, roguem por Abércio. Não se deverá colocar túmulo algum sobre o meu, sob pena duma multa de duas mil peças de ouro para o fisco romano, e de mil para minha querida pátria, Hierápolis”.

Abércio, falando por símbolos, e que principia por dizer que ele mesmo construiu o túmulo em que, depois de morto, ia repousar, proclama-se "discípulo dum santo pastor": este santo pastor, naturalmente, é Nosso Senhor. Em Roma, viu a "Rainha vestida de ouro", ou seja, a Igreja (para Butler, a rainha vestida de ouro, mencionada na inscrição, era a filha do imperador), e um "povo que leva o selo brilhante", quer dizer, os fiéis que estão marcados pelo batismo. Paulo, o Apóstolo, foi-lhe o guia, mestre, segundo os estudiosos.
"Por toda a parte, ela me serviu, como alimento, um peixe de fonte, muito grande, puro, pescado por um virgem pura": significa a Eucaristia, alusão que Abércio faz a Nosso Senhor que nasceu da Virgem Maria. Mais adiante, fala do "vinho delicioso, que nos dá com pão": nova referência à Eucaristia, agora mais clara ainda.
Santo Abércio teve vida movimentada. No tempo de Marco Aurélio, bispo já de Hierápolis, entrou, durante a noite, no tempo de Apolo e destruiu todos os ídolos. Os pagãos, tomados de fúria, acorreram, para matá-lo, mas o santo bispo falou-lhes tão sublime, tão ardentemente, que todos, da fúria, passaram à doçura. Convertidos, levaram-lhe possessos, que foram livres; cegos, que recuperaram a vista; doentes, que se curaram.2
Existe uma literatura muito abundante acerca das inscrições descobertas por Ramsey em Hierápolis, que o referido arqueólogo doou ao Museu de Latrão. Mas as discussões acrescentaram muito pouco à interpretação do bispo anglicano Lightfoot, que analisou a inscrição com seguro instinto de arqueólogo em Ignatius and Polycarp, vol. 1 (1885). G. Ficker e A. Dieterich sustentam que Abércio não era cristão, mas não conseguiram aportar a menor prova em favor de sua tese. F. J. Dölger, em Ichthys (sobretudo vol. 1, 1922, pp. 454–507), responde com grande habilidade a todas as objeções. No artigo de Leclercq, DAC (vol. 1, cc. 66–87), há boas ilustrações e uma bibliografia muito completa; no artigo do mesmo autor na Catholic Encyclopedia, vol. 1, pp. 40–41, encontra-se o texto grego e uma tradução inglesa. No que se refere à vida de Abércio, T. Nissen fez uma edição crítica das duas biografias gregas mais antigas em S. Abercii Vita (1912); embora os textos careçam de valor histórico, contêm certos dados geográficos de importância, bem como algumas citações muito curiosas de Bardesanes. O Pe. Thurston publicou dois artigos sobre São Abércio em The Month (maio e julho de 1890); mas, em 1935, declarou que seria necessário modificar consideravelmente o segundo desses artigos.

Segundo a tradição de Fiésole, São Donato, que era irlandês, fez uma peregrinação a Roma, no início do século IX. Na volta, passou por Fiésole, justamente quando o clero e o povo estavam reunidos para eleger um novo bispo, depois de terem rogado fervorosamente ao Espírito Santo que lhes concedesse um pastor capaz de guiá-los nas difíceis circunstâncias pelas quais atravessavam. Ninguém teria notado Donato quando ele entrou na catedral, pois era um homem insignificante e de baixa estatura, mas nesse exato instante os sinos começaram a tocar e as velas do altar se acenderam sozinhas. O povo interpretou aquilo como um sinal do Céu em favor de Donato e imediatamente o elegeu por aclamação.
O biógrafo de São Donato cita vários versos, um epitáfio composto pelo santo, afirma que foi um grande mestre de gramática e prosódia e que os reis Lotário I e Luís II o distinguiram com sua confiança. Um dos poemas da biografia descreve a beleza da Irlanda. A Festa de São Donato de Fiésole é celebrada atualmente em toda a Irlanda.
No Acta Sanctorum, outubro, vol. IX, há várias biografias. Ver DNB., vol. XV, p. 216; M. Esposito, em Journal of Theological Studies, vol. XXXIV (1923), p. 129; L. Gougaud, Les saints irlandais hors d’Irlande (1936), p. 76; A. M. Tommasini, Irish Saints in Italy (1937), pp. 383–394; e J. Kenney, Sources for the Early History of Ireland, vol. I, pp. 601–602. 3
Referência:
1. Butler, Alban. Vida dos Santos, vol. 4, pp. 177-178.
2. Vida dos Santos, Padre Rohrbacher, vol. 18, p. 409-411.
3. Butler, Alban. Vida dos Santos, vol. 4, p. 180.


























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