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Vida de São Tomás de Vilanova e São Maurício: Os Mártires da Legião Tebana (22 de setembro)



São Tomás de Villanueva por Francisco Camilo.
São Tomás de Vilanova por Francisco Camilo.

Tomás foi outra das glórias que a Espanha deu à Igreja. Veio ao mundo na localidade de Fuentellana, em Castela, no início de 1488, e seu sobrenome lhe veio de Villanueva de los Infantes, a cidade onde cresceu e foi educado. Seus pais eram também originários de Vilanova. O chefe da casa era dono de um moinho e, sem dúvida, sua fortuna não era digna de ser considerada, mas não foi essa a herança mais importante que deixou a seu filho, e sim seu profundo amor por Deus e pelos homens, que se traduzia em uma caridade inesgotável. Aos quinze anos, Tomás foi enviado à Universidade de Alcalá, onde continuou seus estudos com muito êxito; chegou a obter seu título de mestre em artes e, ao cabo de dez anos na casa de estudos de Alcalá, quando tinha vinte e seis anos de idade, já era professor de filosofia e, entre os alunos que assistiam às suas aulas, encontrava-se o famoso Domingo Soto.


Em 1516, Tomás uniu-se aos frades agostinianos em Salamanca e, a julgar por seu exemplar comportamento no noviciado, já havia tido longa experiência no que se refere a austeridades, renúncias aos desejos de sua vontade e exercício da contemplação. Em 1518, foi elevado ao sacerdócio e recebeu a missão de pregar e assumir um curso de Teologia em seu convento. Seus livros de texto eram os de Pedro Lombardo e São Tomás de Aquino e, logo no início do curso, os estudantes da universidade solicitaram permissão para assistir às suas aulas. Possuía uma inteligência excepcionalmente lúcida, e seu extraordinário senso comum fazia com que emitisse juízos concretos e firmes, mas sempre teve de lutar contra distrações e sua falta de memória. Pouco depois, foi prior em várias casas agostinianas e, enquanto desempenhava esses cargos, dispensou particular solicitude pelos frades enfermos. Dizia com frequência a seus religiosos que a enfermaria era como a sarça de Moisés, onde quem se dedica a cuidar dos enfermos encontrará certamente a Deus entre os espinhos que o cercam e o encobrem até ocultá-Lo. Em 1533, quando era provincial de Castela, enviou às terras da América o primeiro grupo de agostinianos que estabeleceram no México sua ordem como missionários. Muitas vezes, Tomás caía em arroubos e êxtases quando se entregava à oração, sobretudo durante a Missa; ainda que se esforçasse por ocultar essas graças, não o conseguia totalmente: muitas vezes, após celebrar o Santo Sacrifício, seu rosto resplandecia com tanta força que parecia deslumbrar os que o contemplavam.


“São Tomás de Vilanova dividindo suas roupas com meninos pedintes”, por Bartolomé Esteban Murillo.
“São Tomás de Vilanova dividindo suas roupas com meninos pedintes”, por Bartolomé Esteban Murillo.

Certa vez, quando pregava na catedral de Burgos para reprovar os vícios e a ingratidão dos pecadores, ergueu bem alto um crucifixo e clamou com voz emocionada: “Cristãos, olhai para Ele...!” Mas não pôde acrescentar mais nada, pois, assim como estava, com o braço erguido e os olhos fixos na cruz, foi arrebatado em êxtase. Em outra ocasião, ao dirigir-se a uma congregação que assistia à cerimônia de tomada de hábito de um noviço, caiu em um rapto e permaneceu mudo e imóvel por um quarto de hora. Ao recobrar os sentidos, disse à assembleia que aguardava expectante: “Irmãos: peço-vos perdão. Tenho o coração frágil e me entristece sentir-me perdido em ocasiões como esta. Procurarei reparar minha falta”.


Tomás realizava a visita periódica a seus conventos quando o imperador Carlos V o chamou para que ocupasse a sede arquiepiscopal de Granada e se apresentasse diante dele em Toledo. O santo empreendeu a viagem, mas com o único objetivo de recusar diante do imperador a dignidade que lhe havia sido concedida; tanta energia pôs em sua súplica, que conseguiu o que queria. Alguns anos mais tarde, Jorge da Áustria renunciou ao arcebispado de Valência, e o imperador voltou a pensar em Tomás, mas imediatamente se arrependeu porque tinha certeza de que ele voltaria a rejeitar o posto; em consequência, ordenou a seu secretário que redigisse um nomeamento em favor de certo religioso da Ordem de São Jerônimo. Ao dispor-se a assinar a carta, o imperador percebeu que seu secretário havia escrito o nome do irmão Tomás de Vilanova e perguntou a razão. Confuso, o secretário respondeu que lhe parecia ter ouvido aquele apelativo, mas que em um momento repararia o erro. “De maneira nenhuma”, disse Carlos V. “Isto aconteceu por um desígnio especial de Deus. Façamos Sua vontade”. Assim, assinou o nomeamento tal como estava e o enviou em seguida a Valladolid, onde Tomás era o prior no convento agostiniano. Este recorreu a todos os meios imagináveis para livrar-se do cargo, mas, ao fim de contas, viu-se obrigado a aceitá-lo e foi consagrado em Valladolid. No outro dia, bem de manhã, partiu para Valência. A mãe do santo, que já então havia transformado sua casa em um hospital para os pobres, pedira-lhe que, em sua jornada, passasse por Villanueva; no entanto, Tomás queria obedecer literalmente àquelas palavras do Evangelho: “deixarás teu pai e tua mãe e te apartarás de tua esposa...”, apressou a marcha e foi diretamente para a sede que agora lhe pertencia, com a convicção de que sua nova dignidade o obrigava a postergar qualquer outra consideração diante da de servir ao rebanho que lhe fora confiado (algum tempo depois, passou um mês de férias com sua mãe em Liria). Sempre viajava a pé pelos caminhos de sua diocese e não usava outra vestimenta além de seu gasto hábito de monge e o chapéu que lhe haviam dado no dia em que fez sua profissão. Em suas caminhadas acompanhavam-no um religioso e dois criados. Quando chegou para assumir sua sede, fez vários dias de retiro em um convento agostiniano de Valência, entregue à penitência e à oração a fim de implorar a graça de Deus para desempenhar devidamente suas funções. Tomou posse de sua catedral no primeiro dia do ano de 1545, em meio a grande regozijo popular. Em consideração à sua pobreza, o cabido ofereceu-lhe quatro mil coroas para que acomodasse sua casa; ele aceitou o donativo de forma humildíssima e agradeceu, comovido, mas imediatamente enviou todo o dinheiro a um hospital com uma recomendação para que o utilizassem na reparação do edifício e no cuidado aos enfermos. Depois quis dar explicações aos cônegos e lhes disse: A Nosso Senhor pode-se servir e glorificar melhor se damos vosso dinheiro aos pobres do hospital que tanto necessitam, em vez de usá-lo eu. Para que quer móveis e adornos um pobre frade como eu?”


São Tomás de Villanova distribuindo esmolas por Mateo Cerezo
São Tomás de Villanova distribuindo esmolas por Mateo Cerezo.

Frequentemente se diz que os honores e o poder mudam os costumes mais arraigados, mas não foi esse o caso de São Tomás que, em sua qualidade de arcebispo, não só conservou a mesma humildade de coração, como todos os sinais exteriores do desprezo por si mesmo. Usou durante vários anos o mesmo hábito com que saiu de seu monastério e, muitas vezes, foi surpreendido enquanto o remendava. Um dos cônegos manifestou-lhe estranheza ao vê-lo perder tempo em costurar um remendo em seu hábito, tarefa que qualquer alfaiate faria com prazer por um maravedí. Mas o arcebispo replicou que não deixara de ser frade e que era melhor poupar aquele maravedí com o qual poderia dar algo de comer a um mendigo. Por regra geral, vestia-se tão pobremente que seus cônegos e familiares se envergonhavam de mostrar-se junto a ele e, quando o instavam a usar roupas mais condizentes com sua dignidade, respondia invariavelmente: “Agradeço-vos muito, senhores, pelos cuidados que tomais por minha pessoa, mas verdadeiramente não posso compreender de que maneira minhas roupas de religioso diminuem minha dignidade de arcebispo. Bem sabeis que minha posição e meus deveres são completamente independentes de minhas vestes e consistem em cuidar das almas que me foram confiadas.” A força de insistir, os cônegos chegaram a convencê-lo a trocar seu velho chapéu de feltro por outro de seda, novo e reluzente, o qual, a partir de então, igualava em material a caridade de seu espírito. Aborrecia as murmurações e, sempre que ouvia falar mal de alguém, defendia o ausente. Senhores, dizia nessas ocasiões: julgais o assunto de ponto de vista equivocado. Se esse homem agiu mal, pode ter tido boa intenção, o que basta para que tenha agido bem. Por minha parte, creio que assim foi.” Registraram-se muitos exemplos sobre os dons sobrenaturais que possuía São Tomás, como seu poder para curar doenças e multiplicar provisões, assim como de numerosos milagres que realizou ou que se atribuem à sua intercessão, antes e depois de sua morte.


Não se sabe com certeza a razão que impediu o santo arcebispo de assistir ao Concílio de Trento. Em sua representação, o bispo de Huesca e a maioria dos bispos de Castela lhe fizeram consultas antes de partir para a magna assembleia. Sabe-se que a todos pediu que lutassem para conseguir que o Concílio decretasse uma reforma interna da Igreja, tão necessária quanto a batalha contra a heresia do luteranismo. Sugeriu ainda duas propostas muito interessantes que, infelizmente, não foram consideradas. Uma delas consistia em que todos os trabalhos pelo bem das almas fossem desempenhados por sacerdotes ou religiosos nativos do país, desde que qualificados para tal, especialmente nos distritos rurais; na segunda proposta, pedia que fosse reforçada e atualizada a antiga lei canônica que proibia a transferência do bispo de uma sede para outra. Aquela ideia da união indissolúvel do bispo com sua sede, como com uma esposa, sempre esteve presente na mente do santo, que viveu consagrado ao completo desempenho de seus deveres episcopais. “Nunca senti tanto medo”, confessou certa vez, “de ficar excluído do número dos eleitos, como no momento em que fui consagrado bispo.” Em diversas oportunidades solicitou em vão autorização para renunciar, até que, por fim, Deus teve a bondade de ouvir suas súplicas e o chamou para Seu seio. No mês de agosto de 1555, foi atacado por uma angina de peito. Ao sentir-se doente, ordenou que todo o dinheiro em sua posse fosse distribuído entre os pobres; o restante de seus bens, exceto a cama em que jazia, foi para as mãos do reitor de sua amada escola; sua cama foi herdada pelo carcereiro para que a desse aos presos, com a condição de que o futuro dono a devolvesse quando não mais precisasse dela. No dia 8 de setembro, seu fim parecia iminente. Mandou que fosse celebrada uma Missa em sua presença; após a consagração, começou a recitar em voz alta, firme e pausada, o salmo In te, Domine, speravi; terminado a comunhão do sacerdote, disse o versículo: “Em tuas mãos, Senhor, encomendo meu espírito” e, com estas palavras, entregou a alma a Deus, tendo completado sessenta e seis anos de idade. De acordo com seus desejos, foi sepultado na igreja dos frades agostinianos em Valência. Foi canonizado em 1658. Em vida, chamavam São Tomás de “protótipo de bispos”, “o generoso”, “o pai dos pobres” e, certamente, era tudo isso e muito mais, porque estava inflamado por um grande amor a Deus que se manifesta em sua apaixonada e terna exortação:


“Ó, maravilhosa bênção! Deus nos promete o Céu como recompensa por amá-Lo! Não é acaso Seu próprio amor a maior, a mais desejável, a mais preciosa das recompensas e a mais doce das bênçãos? No entanto, há ainda outra recompensa, um prêmio imenso para agregar à de Seu amor. Maravilhosa bondade! Tu nos deste Teu amor e, por causa desse amor, nos entregas o Paraíso.”

“A caridade de São Tomás de Vilanova”, por Bartolomé Esteban Murillo.
“A caridade de São Tomás de Vilanova”, por Bartolomé Esteban Murillo.

Ao redigir a história de Sao Tomás de Vilanova (Acta Sanctorum, sept. vol. v), os bolandistas traduziram do espanhol a biografia escrita por Miguel Salón, um contemporâneo que, após publicar a primeira biografia em 1588, utilizou os dados fornecidos pelo processo de canonização para publicar um trabalho mais completo em 1620. Os bolandistas publicaram também as memórias de um agostiniano, amigo pessoal do santo, o bispo Juan de Muñatones. Essas memórias apareceram originalmente como prefácio em um volume com a coleção de sermões e cartas de São Tomás que o bispo Muñatones editou em 1581. Entre outras fontes de informação, há um sumário dos detalhes do processo de canonização recolhidos em Valência e em Castela, resumo este que também foi usado pelos bolandistas em seu prefácio e anotações. Esse sumário está complementado com notas sobre os milagres e as relíquias do santo. Desde que os bolandistas publicaram sua história, em 1755, nada digno de consideração foi agregado ao material biográfico. Há um breve estudo de Quevedo e Villegas, assim como uma biografia em alemão escrita por Poesl (1860) e outra em francês por Dabert (1878). Os escritos de São Tomás de Vilanova foram cuidadosamente coletados, editados e traduzidos para outras línguas. [1]




São Maurício e a Legião Tebana, terceiro quartel do século XV.
São Maurício e a Legião Tebana, terceiro quartel do século XV.

No final do século III, vários milhares de “bagaudes”, habitantes das Gálias, se levantaram em armas, e o Augusto Maximiano Herculio marchou de Roma para sufocar a rebelião, à frente de um grande exército no qual figurava a Legião Tebana. Os guerreiros daquela legião haviam sido recrutados no Alto Egito e todos eram cristãos. Quando o exército chegou a Octodurum (Martigny), sobre o Ródano, pouco antes de sua desembocadura no lago de Genebra, o Augusto Maximiano deu uma ordem para que todos os seus soldados se unissem à cerimônia de oferecer sacrifícios aos deuses pelo sucesso de sua expedição. Todos os membros da Legião Tebana retiraram-se para acampar nas proximidades de Agaunum (atualmente chamada Saint Maurice-en-Valais), depois de anunciar que se recusavam terminantemente a participar dos ritos. Repetidas vezes, Maximiano enviou mensageiros ao acampamento dos tebanos para exigir-lhes obediência e, diante das reiteradas e unânimes negativas, condenou os legionários a serem dizimados. Assim, um homem de cada dez foi sacrificado. Cumprida a sentença, os chamados de Maximiano para que os tebanos acatassem as ordens ou se arriscassem a ser dizimados novamente foram reiterados, mas todos, sem faltar um, responderam que estavam dispostos a sofrer qualquer penalidade antes de participar de um culto contrário à sua religião.


Nessa geral manifestação de fé, os legionários foram encorajados e orientados, sobretudo, por três oficiais: Maurício, Exúperio e Cândido, que desempenhavam os cargos de primicério, campiductor e senador militum, respectivamente. Maximiano chegou pessoalmente ao acampamento dos rebeldes para adverti-los de que não confiassem em se salvar uma vez pago aquele segundo décimo, pois, se persistissem na desobediência, nem um só homem da legião permaneceria vivo. Os soldados designaram um de seus membros para responder a Maximiano em nome dos demais, com todo respeito:


Somos vossos soldados, senhor, mas antes de tudo somos servos do verdadeiro Deus. Devemos obediência nas obrigações militares, mas não podemos renunciar Àquele que é nosso Criador e nosso Senhor, e que é também vosso, embora o rejeiteis. Em todas as coisas que não sejam contrárias à Sua lei, obedeceremos com nossa melhor vontade, como temos feito até agora. Sempre enfrentamos vosso inimigo, quem quer que fosse, mas não podemos manchar nossas mãos com o sangue de inocentes. Comprometemo-nos com um juramento a Deus antes de jurar servi-lo no exército, e nem mesmo vós poderíeis confiar em nosso segundo juramento, se não fôssemos capazes de cumprir fielmente o primeiro. Ordenais-nos punir os cristãos, mas não vedes que nós mesmos somos cristãos. Confessamos a Deus Pai, autor de todas as coisas, e a Seu Filho Jesus Cristo. Vimos como matavam nossos companheiros, sem lamentar sua morte e, antes, nos regozijamos pelo honor que lhes coube. Não penseis, senhor, que vossa provocação nos incita à rebeldia. Teremos armas nas mãos, mas não por isso nos recusamos a obedecer-vos, e sim porque preferimos morrer inocentes a viver em pecado.”

“O Martírio de São Maurício”, por El Greco.
“O Martírio de São Maurício”, por El Greco.

A Legião Tebana consistia em seis mil e seiscentos homens e, como Maximiano perdeu toda esperança de dobrar sua constância, ordenou ao restante de seu exército que cercasse os tebanos e os destruísse. Nenhum dos cristãos ofereceu resistência e todos se entregaram ao sacrifício com a mansidão de cordeiros. O massacre foi espantoso: um vasto terreno ficou coberto pelos montes de cadáveres dos quais jorravam riachos de sangue. Maximiano inspecionou a obra e, evidentemente satisfeito, mandou que seus soldados despojassem os mortos de suas roupas e armas e ficassem com elas como espólio. Todos estavam ocupados com a macabra tarefa, quando um veterano chamado Vítor se recusou a participar. Seus companheiros perguntaram se também era cristão, ao que respondeu afirmativamente. Imediatamente, precipitaram-se sobre ele e o mataram. Outros dois soldados daquela legião, chamados Vítor e Urso, que haviam ficado para trás na marcha, em cumprimento de alguma ordem, foram procurados até serem encontrados na cidade de Solothurn, onde foram assassinados.


De acordo com diversas lendas locais, os poucos membros da legião que não foram exterminados no massacre geral por estarem ausentes, como São Alexandre de Bérgamo, os santos Octávio, Adventor e Solutor em Turim, e São Gereão em Colônia, foram igualmente localizados e mortos por sua fé. O Martirológio Romano menciona Vitalis, Inocêncio, os três santos martirizados em Turim e um Vítor na data de hoje; os santos Urso e o outro Vítor em 30 de setembro e, na mesma data, Santo Antonino de Piacenza, erroneamente vinculado à Legião Tebana. São Euquério, ao referir-se às relíquias dos legionários conservadas em Agaunum, disse:


Muita gente vem de diversas províncias para honrar devotamente estes santos, e não são poucos os que deixam no santuário presentes de ouro, prata e diversos objetos. Eu só posso oferecer-lhes humildemente esta obra da minha pena e peço que intercedam pelo perdão de meus pecados e não cessem de me proteger”.

O mesmo autor menciona inúmeros milagres ocorridos naquele santuário e fala de certa mulher paralítica que recuperou o movimento graças aos santos mártires, “e agora carrega consigo, por toda parte, o testemunho do milagre”, acrescenta São Euquério. Este santo foi o principal testemunho na história que acabamos de relatar. Era bispo de Lyon durante a primeira metade do século V e, a pedido de outro bispo chamado Salvio, realizou investigações e escreveu um relato sobre o massacre de Agaunum e os mártires da Legião Tebana, em cujo honor se ergueu naquela cidade uma basílica no final do século IV, por ocasião de uma visão que teve o então bispo de Agaunum, Teodoro, sobre o lugar onde se encontravam enterrados os restos. Euquério afirma ter obtido suas informações de Isaac, bispo de Gênova, que, por sua vez, as teria recebido do próprio Teodoro. Deve-se observar que, como se diz em nosso relato, os legionários, em sua declaração, aludem à sua recusa de derramar o sangue de cristãos inocentes. Parece indubitável que, pelo menos, essa parte da protesto tenha sido acrescentada por São Euquério, que declara que os tebanos foram mortos por se recusarem a participar do massacre dos cristãos e não faz menção à rebelião dos “bagaudes” nas Gálias.


Em outras narrativas sobre esses mártires, diz-se que sofreram a morte por terem recusado sacrificar aos deuses. São Maurício e seus companheiros da Legião Tebana foram objeto de muitas discussões, investigações e estudos. É improvável que a legião inteira tenha sido sacrificada, não porque os generais do Império Romano não fossem capazes de realizar um massacre em massa, mas porque as circunstâncias da época e a absoluta ausência de provas contemporâneas vão contra a completa autenticidade da história. Alban Butler lamenta que “a veracidade daquele acontecimento” tenha sido posta em dúvida por alguns historiadores protestantes, mas também pesquisadores católicos manifestaram hesitações em aceitá-la, e alguns chegaram a dizer que toda a história é falsa e inventada. Entretanto, parece evidente que o massacre de São Maurício e seus companheiros em Agaunum é um fato histórico; o número de homens que morreram então é outra questão; há muitas possibilidades de que, com o passar do tempo, tenha-se acreditado que uma simples esquadrilha era uma legião. [2]



“O Martírio de São Maurício”, por Romulo Cincinnato.
“O Martírio de São Maurício”, por Romulo Cincinnato.

Noutra versão vemos o seguinte: Não há, na história da Igreja, martírio mais glorioso nem mais memorável que o comemorado hoje: o martírio de uma legião inteira, isto é, 6.666 soldados. Ela era chamada de Legião Tebana, por ser inteiramente composta de habitantes da cidade de Tebas, no Egito. Essa legião sempre gozou da elevada estima dos imperadores por causa da bravura de seus soldados e oficiais. Nos reinados de Diocleciano e Maximiano, o posto desses soldados era o território da Síria e da Palestina; nesse período, Maurício, seu principal comandante, residia em Jerusalém. 


Ele e todos os que lhe estavam subordinados eram pagãos. Mas, tendo conhecido o bispo de Jerusalém, Maurício travou com ele muitas conversas sobre religião e foi levado a reconhecer a verdade de forma tão cabal que decidiu tornar-se cristão. Exupério e Cândido, dois oficiais e amigos seus, persuadidos por Maurício, seguiram seu exemplo e foram batizados com ele. Logo depois de batizado, ele informou seus soldados do fato e falou com tal ênfase sobre a cegueira do paganismo e a luz da verdadeira fé que eles unanimemente manifestaram o intento de abraçar o cristianismo, como ele o fizera. O bispo, com o auxílio de seus presbíteros, logo começou a instruí-los na fé e, quando estavam suficientemente preparados, recebeu-os na Igreja de Cristo pelo santo Batismo. Os novos soldados cristãos levavam uma vida tão irrepreensível que sua piedade edificava até mesmo os nascidos dentro da fé.


Nesse ínterim, irrompeu uma revolta na Gália, que o imperador Maximiano preparou-se para reprimir imediatamente. Para tanto, convocou a legião tebana à Itália, de modo a reunir-se ao exército do imperador. Maurício foi com a legião até Roma e procurou o Papa Marcelino, que o recebeu com grande alegria e ministrou, a ele e a seus soldados, o sacramento do Crisma. Iniciada a campanha, eles marcharam por Milão e cruzaram os Alpes. 


Quando chegaram ao território de Valais, os soldados acamparam em uma grande planície, e o imperador marcou uma data em que, mediante um grande sacrifício público, eles deveriam invocar os deuses para ajudá-los na batalha iminente. O exército inteiro deveria estar presente e todos renovariam seu juramento de lealdade. São Maurício deliberou com sua legião se compareceriam ou não ao sacrifício. Por fim, ele disse: “Se nos apartarmos dos outros, o imperador ficará ofendido; mas, se comparecemos ao sacrifício, insultamos a Deus. Creio que seja melhor cair no desagrado do imperador que no de Deus”. Todos os soldados concordaram com suas palavras e, apartando-se dos soldados pagãos, acamparam perto de um lugarejo entre os Alpes e o Ródano, a cerca de vinte quilômetros de Genebra. Informado disso, o imperador enviou um mensageiro até Maurício, desejoso de saber o motivo da ausência de sua legião ao sacrifício. Maurício enviou a seguinte resposta: 


    São Gereão de Colônia da Legião Tebana e seus companheiros, Stefan Lochner, c. 1440.
São Gereão de Colônia da Legião Tebana e seus companheiros, Stefan Lochner, c. 1440.

Somos cristãos, e como nossa fé não nos permite cultuar falsos deuses, não podemos comparecer ao sacrifício. Não obstante, no tocante a nosso dever de soldados, estamos prontos para marchar contra qualquer inimigo, seja ele quem for, e preferimos perder nossa vida a ser desleais ao imperador. 


Enfurecido, o imperador ordenou que eles retornassem ao acampamento e assistissem ao sacrifício; do contrário, daria ordens para que fosse executado um homem a cada dez da legião. Assim que a ordem foi anunciada, todos manifestaram o mais ardente desejo de morrer por Cristo. Os soldados exclamaram que não apenas um em cada dez, mas que todos eles estavam prontos antes a morrer que negar a própria fé assistindo ao sacrifício. Enquanto essa resposta era levada ao imperador, São Maurício exortava seus soldados a conservar-se intrépidos e destemidos, pois uma importante e gloriosíssima vitória estava em jogo, uma vitória que não poderia ser obtida pelas armas, mas pela paciência no sofrimento e na morte. 


Eles, porém, não precisavam de exortações. Não havia um único entre eles que não desejasse ser aquele décimo, de modo a dar a vida pela fé. Quando chegaram os soldados encarregados de executar a ordem do imperador e dizimar a legião, esta deu um exemplo inaudito de amor a Cristo. Todos os legionários queriam ser aquele décimo, e davam a sua bênção aos que seriam executados. 


Dizimada a décima parte dos legionários, o imperador enviou mensageiros perguntando se os demais obedeceriam à sua ordem. Mas todos mantiveram a decisão: obedeceriam em todas as coisas a César, desde que não fossem contrárias às leis do Todo-Poderoso. Como, porém, a ordem do imperador contrariava tais leis, eles não poderiam obedecer, e não obedeceriam. Tão logo soube da decisão, o imperador ordenou novamente que um homem em cada dez fosse executado. Cumprida a ordem, e informado o imperador de que nem um único legionário sequer hesitara em sua decisão, este ficou tão furioso que ordenou a todo o seu exército marchar contra os legionários e matá-los um por um. 


Os tebanos poderiam ter-se defendido facilmente, ou buscado segurança na fuga, mas seu desejo de derramar o sangue por Cristo era grande demais para que tentassem escapar à morte. Louvando a Deus, eles baixaram suas armas e, como ovelhas pacientes, deixaram-se retalhar em pedaços, como era o desejo dos pagãos sanguinários. São Maurício encorajou a todos com palavras inspiradoras até que sua vida lhe foi tirada. 


Após o massacre, um soldado chamado Vítor chegou ao local, viu o espetáculo aterrador e, tendo ouvido falar de sua causa, suspirou: Ah! Se eu tivesse chegado mais cedo, agora estaria tão feliz como eles estão!” Indagado se era cristão, e confirmando-o com destemor, Vítor foi morto no mesmo instante, e assim pôde partilhar das alegrias a que aspirara. Esse martírio glorioso aconteceu no dia 22 de setembro do ano 286. No vale onde se deu o massacre, existe agora uma igreja magnífica, construída em honra de São Maurício e seus companheiros. [3]


São Maurício, em retrato de Lucas Cranach, o Velho.
São Maurício, em retrato de Lucas Cranach, o Velho.

A igreja construída por São Teodoro de Octodurum, em datas posteriores ao evento, tornou-se o centro de uma abadia que foi a primeira no ocidente a manter a oração contínua do ofício divino, dia e noite, com turnos de coros. Aquela comunidade ficou a cargo dos cônegos regulares e é agora uma abadia nullius. Ali conservam-se as relíquias dos mártires em um relicário do século VI, mas tanto as relíquias quanto a veneração aos legionários tebanos se expandiram muito além das fronteiras da Suíça. Na liturgia da Igreja do ocidente, eles são lembrados. São Maurício é Padroeiro da Saboia e da Sardenha, de diversas cidades, dos soldados da infantaria, dos ferreiros de espadas, dos tecelões e dos tintureiros. O texto de São Euquério, que sofreu muitos acréscimos e modificações, encontra-se nos inseridos de Ruinart no Acta Sanctorum, sept. vol. VI; mas é de primeira importância consultar a edição de B. Krusch em MGH, Scriptores Merov., vol. 11, pp. 32-41. Sobre a questão do martírio em massa, o escrito mais sóbrio e confiável é o de M. Besson, Monasterium Acaunense (1913). Besson discorda dos pontos de vista extremados de Krusch, apesar de que os seus também se prestam a críticas (cf. Analecta Bollandiana, vol. XXXIII, pp. 243-245). O assunto é tratado extensamente também no DAC., vol. X (1932), cc. 2699-2729, de H. Leclercq. A bibliografia fornecida ocupa quatro longas colunas em espaço reduzido e demonstra o grande interesse que o tema despertou. Ver também O. Lauteburg e R. Marti-Wehrn, em Martyrium von Sankt Mauritius. Die Legende (1945).


Referência:


  1. Butler, Alban. Vida dos Santos, vol. 3, pp. 635-641.

  2. Ibid. pp. 643-446.

  3. Traduzido e adaptado de Lives of the saints: compiled from authentic sources with a practical instruction on the life of each saint, for every day in the year, v. 2. New York: P. O’Shea, 1876, p. 372ss. Disponivel no artigo "Os incríveis martírios de São Maurício e Santo Emerão".


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