Vida de São Remígio de Reims e Os Mártires de Londres de 1588 II (1 de outubro)
- Sacra Traditio

- 1 de out.
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São Remígio, o grande apóstolo dos francos, distinguiu-se por sua sabedoria, santidade e milagres. Seu episcopado, que durou mais de setenta anos, tornou-o célebre na Igreja. Seus pais, de ascendência gaulesa, habitavam em Laon. Remígio progrediu rapidamente na ciência. São Sidônio Apolinário, que o conheceu em sua juventude, considerava-o um dos mais eminentes oradores da época. Aos vinte e dois anos, ou seja, numa idade em que dificilmente se recebia a ordenação sacerdotal, foi eleito bispo de Reims. Apesar da juventude, recebeu imediatamente as ordens sagradas e foi consagrado bispo. Seu fervor e energia supriram amplamente a falta de experiência. Sidônio Apolinário, que não carecia certamente de prática em matéria de panegíricos, descreveu em termos elogiosos a caridade e a pureza com que o novo bispo oferecia a Deus o incenso perfumado no altar e o zelo com que soube conquistar os corações mais rebeldes, levando-os a aceitar o jugo da virtude. O próprio Sidônio Apolinário afirma que um vizinho de Clermont lhe emprestou um manuscrito com os sermões de São Remígio. “Não sei”, diz ele, “como obteve esse exemplar. Mas o certo é que não era homem interesseiro, pois mo entregou gratuitamente em vez de vendê-lo”. Depois de ler os sermões, escreveu a São Remígio dizendo que a delicadeza do pensamento e a beleza da expressão os tornavam comparáveis ao cristal de rocha, sobre o qual se pode passar o dedo sem encontrar a menor irregularidade. Com essa extraordinária eloquência (da qual, infelizmente, nada nos chegou) e, sobretudo, com sua santidade pessoal, São Remígio empreendeu a tarefa de evangelizar os francos.
Clóvis, rei da Gália do norte, era ainda pagão, embora não hostil à Igreja. Casara-se com Santa Clotilde, filha de Quilperico, rei da Borgonha. Clotilde, cristã fervorosa, multiplicara os esforços para converter o marido. Clóvis consentiu que seu primogênito fosse batizado, mas o herdeiro morreu pouco depois, e o rei acusou a esposa de culpada por tê-lo batizado. “Se o tivéssemos consagrado aos meus deuses”, disse ele, “não teria morrido. Mas como o batizamos em nome do teu Deus, era impossível que vivesse.” Apesar disso, Clotilde mandou batizar também o filho seguinte, que logo adoeceu. O rei enfureceu-se: “Eis os efeitos do batismo!”, exclamou colérico. “Nosso filho está condenado à morte, como seu irmão, por ter sido batizado em nome de Cristo.” Embora o menino tenha recuperado a saúde, o obstinado Clóvis ainda necessitava de provas maiores para se converter. Finalmente, o dedo de Deus se manifestou de modo incontestável no ano de 406, quando os germanos atravessaram o Reno e os francos marcharam contra eles. Conta-se que Santa Clotilde despediu-se do esposo com estas palavras: “Senhor, se desejais obter a vitória, invocai o Deus dos cristãos. Se n’Ele confiardes, ninguém vos poderá resistir.” O guerreiro monarca prometeu converter-se ao cristianismo se saísse vitorioso. Quando a vitória lhe parecia impossível, Clóvis, movido pelo desespero ou pelo eco das palavras da esposa, ergueu os olhos ao céu e clamou: “Ó Cristo, a quem minha esposa invoca como Filho de Deus, peço-Te que me ajudes! Invoquei meus deuses, e mostraram-se impotentes. Agora invoco a Ti. Creio em Ti. Se me salvares dos meus inimigos, receberei o batismo em Teu nome.” Imediatamente, os francos atacaram com extraordinária bravura, e os germanos foram derrotados.

Diz-se que, ao voltar dessa expedição, Clóvis passou por Toul para ver São Vedasto, a quem pediu que o instruísse na fé durante a viagem. Mas, temendo que o esposo esquecesse a promessa após o entusiasmo da vitória, Santa Clotilde mandou chamar São Remígio e pediu-lhe que aproveitasse a ocasião para tocar o coração de Clóvis. Quando o rei divisou sua esposa ao regressar da guerra, exclamou: “Clóvis venceu os germanos, e tu venceste Clóvis. Por fim conseguiste o que tanto desejavas.” Santa Clotilde respondeu: “Ambas as vitórias são obra do Senhor dos Exércitos.” O rei disse à esposa que o povo talvez resistisse a abandonar os antigos deuses, mas que ele mesmo procuraria convencê-los, seguindo as instruções de São Remígio. Assim, reuniu oficiais e soldados. Porém, antes que pudesse lhes dirigir a palavra, todo o exército bradou em uníssono: “Renunciamos aos deuses mortais e estamos prontos a seguir o Deus imortal que prega Remígio.” São Remígio e São Vedasto encarregaram-se de instruir o povo para o batismo. Para impressionar a imaginação daquele povo bárbaro, Santa Clotilde ordenou que se enfeitasse com grinaldas a rua que conduzia do palácio à igreja e que, nesta e no batistério, se acendessem numerosas tochas e se queimasse incenso para perfumar o ambiente. Os catecúmenos dirigiram-se à igreja em procissão, cantando ladainhas e carregando cada um uma cruz. São Remígio conduzia pela mão o rei, seguido da rainha e de todo o povo. Conta-se que, diante da pia batismal, o santo bispo dirigiu ao rei estas palavras memoráveis: “Humilha-te, sicambro; adora o que queimaste e queima o que adoraste.” Esta frase resume perfeitamente a transformação que a penitência deve operar em cada cristão.

Mais tarde, São Remígio batizou as duas irmãs do rei e três mil de seus soldados, sem contar as mulheres e as crianças. Na tarefa, ajudaram-no outros bispos e sacerdotes. Hincmaro de Reims, que escreveu a biografia de São Remígio no século IX, é o primeiro autor que menciona a seguinte lenda: como os acólitos tivessem esquecido o crisma para as unções no batismo de Clóvis, São Remígio pôs-se em oração; imediatamente desceu do céu uma pomba que trazia no bico uma ampolinha com o santo crisma. Na abadia de São Remígio conservou-se a pretendida relíquia, que foi empregada na consagração dos reis da França até a coroação de Carlos X, em 1825. Embora a Revolução tenha destruído a relíquia, fragmentos da “Santa Ampola” ainda se conservam na catedral de Reims. Também se diz que São Remígio conferiu a Clóvis o poder de curar “o mal dos reis” (a escrófula); em todo caso, na cerimônia de coroação dos reis da França até Carlos X, fazia-se menção desse poder, relacionado com as relíquias de São Marculfo, que morreu por volta do ano 558.
Sob a proteção de Clóvis, São Remígio pregou o Evangelho aos francos. Deus o favoreceu com um dom extraordinário de milagres. Os bispos reunidos em Lyon em um Sínodo contra os arianos declararam que se sentiram movidos a defender zelosamente a fé católica pelo exemplo de Remígio, “que com múltiplos milagres e sinais destruiu em toda parte os altares dos ídolos.” O santo promoveu especialmente a ortodoxia na Borgonha, infestada de arianos. Em um Sínodo ocorrido no ano 517, São Remígio converteu um bispo ariano que fora discutir com ele. Pouco depois da morte de Clóvis, os bispos de Paris, Sens e Auxerre escreveram a São Remígio a respeito de um sacerdote chamado Cláudio, a quem o santo havia ordenado a pedido de Clóvis. Os bispos o censuravam por ter concedido a ordenação a um homem indigno, acusavam-no de ter-se vendido ao monarca e insinuavam certa cumplicidade nos abusos financeiros cometidos por Cláudio. São Remígio não teve dificuldade em responder aos bispos que tais acusações lhes haviam sido ditadas pelo despeito; contudo, sua resposta foi um modelo de caridade e paciência. Quanto ao desprezo com que consideravam sua avançada idade, o santo respondeu: “Antes deveríeis alegrar-vos fraternalmente comigo, pois, apesar da minha idade, não tenho que comparecer diante de vós como acusado nem pedir misericórdia.” Em contrapartida, usava um tom muito diferente ao falar de certo bispo que havia exercido jurisdição fora de sua diocese: “Se Vossa Excelência ignorava os cânones, o mal consistiu em atrever-se a sair da diocese antes de estudá-los... Tenha cuidado Vossa Excelência em não violar os direitos alheios, se não quiser perder os próprios.”
São Remígio morreu por volta do ano 530. São Gregório de Tours o descreve como “homem de grande saber, muito amante dos estudos de retórica, e igual em santidade a São Silvestre.”

Embora seja autêntica a carta em que São Sidônio Apolinário (esse “panegirista inveterado”, como foi chamado) exalta com entusiasmo os sermões de São Remígio, a maioria das fontes sobre ele é pouco satisfatória. A breve biografia atribuída a Venâncio Fortunato não é obra deste autor e data de época posterior. Por sua vez, a Vita Remigii de Hincmaro de Reims é de três séculos após a morte do santo e é suspeita pela quantidade de milagres narrados. Assim, devemos nos basear nas poucas referências que se encontram nos escritos de São Gregório de Tours. A isso se somam uma ou duas frases das cartas de São Avito de Vienne, de São Nicécio de Tréveris, etc., e três ou quatro cartas do próprio São Remígio. A questão da data, do local e da ocasião do batismo de Clóvis deu lugar a intermináveis discussões, nas quais participaram eruditos tão distintos como B. Krusch, W. Levison, L. Levillain, A. Hauck, G. Kurth e A. Poncelet. Encontra-se um resumo detalhado dessa controvérsia no artigo Clóvis, DAC., vol. III, col. 2038-2052. Pode-se dizer que até agora não se encontrou argumento decisivo para derrubar a teoria tradicional que expusemos em nosso artigo, ao menos quanto ao fato substancial de que Clóvis foi batizado em Reims por São Remígio no ano 496, ou pouco depois, em consequência de uma vitória sobre os germanos. B. Krusch fez uma edição dos principais documentos relacionados com o assunto, incluindo o Liber Historiae. Ver também BHL., nn. 7150-7173; G.C. Kurth, Clovis (1901), sobretudo vol. II, pp. 262-265; e cf. R. Hauck, Kirchengeschichte Deutschlands, vol. I (1904), pp. 119, 148, 217, 595-599. Existem várias biografias pouco críticas, de caráter popular, como as de Haudecoeur, Avenay, Carlier e outros. Quanto ao poder de cura dos Reis da França, veja-se Le Roi Thaumaturge de M. Bloch (1924). Sobre a “Santa Ampola”, cf. F. Oppenheimer, The Legend of the Sainte Ampoule (1953). [1]

EM 28 de agosto recordam-se os mártires que sofreram em Londres quando se desencadeou a perseguição de julho de 1588, como consequência, ou melhor, represália, do alarme provocado pelas ameaças de invasão da Armada Invencível, espanhola e cristã. Em outubro daquele ano houve uma série de execuções nas províncias: quatro católicos foram martirizados em Canterbury e outros três em diferentes cidades. O Beato ROBERTO WILCOX nasceu em Chester, em 1586. Estudou no Colégio Inglês de Reims e foi enviado à missão inglesa em 1586. Começou a trabalhar em Kent; mas nesse mesmo ano foi preso e encarcerado em Marshalsea. Condenado à morte, foi enforcado, arrastado e esquartejado nos arredores de Canterbury, no lugar chamado Oaten Hill. Com ele morreram os beatos EDUARDO CAMPION, CRISTÓVÃO BUXTON e ROBERTO WIDMERPOOL. Campion (cujo verdadeiro sobrenome era Edwards) nascera em Ludlow, em 1552. Passou dois anos no Jesus College, de Oxford. Quando estava a serviço de Lord Dacre, reconciliou-se com a Igreja. Em 1586, foi estudar em Reims, onde tomou o nome de Campion. No início do ano seguinte, foi ordenado sacerdote da diocese de Canterbury e voltou imediatamente à Inglaterra. Foi preso em Sittingbourne e encarcerado, primeiro em Newgate e depois em Marshalsea. O P. Buxton era natural de Derbyshire. Teve como professor, na escola, o Venerável Nicolau Garlick e fez os estudos sacerdotais em Reims e em Roma. Foi preso pouco depois de seu regresso à Inglaterra. Esses três sacerdotes seculares foram condenados por terem retornado ao reino na qualidade de sacerdotes.

O Beato Cristóvão era o mais jovem dos mártires. Os algozes julgaram que o intimidariam obrigando-o a assistir ao martírio de seus companheiros, mas, quando lhe ofereceram a liberdade ao preço da apostasia, Cristóvão respondeu que preferiria morrer mil vezes antes de aceitar tal proposta. Na prisão de Marshalsea escreveu um “Rituale”, que ainda se conserva como relíquia. O Sr. Widmerpool, o quarto dos mártires de Canterbury, era leigo. Nascera em Widmerpool, localidade de Nottinghamshire, e estudara no Gloucester Hall de Oxford, onde obteve o título de mestre-escola. Durante algum tempo, foi tutor dos filhos do conde de Nortúmbria. Acusaram-no de ter ajudado um sacerdote, oferecendo-lhe refúgio na casa do conde. Antes de ser enforcado, o beato agradeceu a Deus por lhe ter concedido o privilégio de morrer pela fé na mesma cidade que São Tomás Becket.
No mesmo dia, foram executados em Chichester os beatos RODOLFO CROCKETT e EDUARDO JAMES, e o beato JOÃO ROBINSON, em Ipswich. Os três eram sacerdotes seculares, e essa foi a causa de sua condenação. Crockett e James foram presos no navio em que seguiam para Littlehampton, em abril de 1586. O primeiro nascera em Barton-on-the-Hill, em Cheshire, e estudara no Christ's College, de Cambridge, e em Gloucester Hall, de Oxford. Exerceu em Anglia Oriental o cargo de mestre-escola antes de ingressar no colégio de Reims. O segundo, nascido em Breaston, Derbyshire, fora educado no protestantismo na escola de Derby e no St. John's College de Oxford. Após sua conversão, foi para Reims e, mais tarde, para Roma, onde recebeu a ordenação sacerdotal das mãos de Goldwell de Saint Asaph. Ambos os beatos foram presos e levados à prisão de Londres, onde permaneceram mais de dois anos e meio. Após o fracasso da Armada Invencível, compareceram diante do tribunal de Chichester, que decidiu usá-los como exemplo. A história de João Robinson não é muito diferente. Nascera em Ferrensbury, no Yorkshire. Ao ficar viúvo, partiu para Reims, onde seu filho Francisco também estudava para o sacerdócio. Recebeu a ordenação sacerdotal em 1585. Foi preso assim que desembarcou em solo inglês. Depois de passar algum tempo na prisão de Clink, em Londres, compareceu diante do tribunal, que o condenou à morte. No dia em que chegou a Ipswich a autorização oficial para a execução (28 de setembro de 1588), o beato “encheu-se de alegria, deu todo o seu dinheiro ao portador da autorização e caiu de joelhos para agradecer a Deus”.

Cf. MMP., pp. 146-150; Burton e Pollen, LEM., vol. 1, pp. 447-507. Sobre o Rituale de Buxton, ver Clergy Review, fev. 1952. [2]
Referência:
Butler, Alban. Vida dos Santos, vol. 4, pp. 1-4.
Ibid. pp. 8-9.


























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