Vida de São José Cafasso e São Liberto de Cambrai (23 de junho)
- Sacra Traditio

- 23 de jun.
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SÃO JOSÉ CAFASSO (1860 d.C.)

É costume referir-se a São José Cafasso como um santo da Congregação Salesiana, e isso se compreende pelo fato de que José era amigo íntimo e diretor espiritual de São João Bosco; entretanto, trata-se de um erro: São José Cafasso foi um sacerdote secular, e sua existência, nobre e generosa, esteve tão desprovida de incidentes externos, como o estão, via de regra, as vidas dos membros do clero pastoral da Igreja.
Nasceu no mesmo lugar que foi o berço de São João Bosco e de muitos outros notáveis homens da Igreja, a pequena cidade de Castelnuovo d’Asti, no Piemonte. Ali veio ao mundo José, em 1811. Seus pais, João Cafasso e Úrsula Beltramo, eram camponeses abastados, e José foi o terceiro de quatro filhos, dos quais, a mais nova, Maria Ana, viria a ser a mãe do cônego José Allamano, fundador dos sacerdotes missionários da “Consolata”, de Turim. Em sua infância, José era o aluno mais destacado da escola local e sempre disposto a ajudar seus colegas com as lições: vários anos depois, um de seus antigos condiscípulos lhe recordou que ainda lhe devia um par de pega-rabudas vivas que prometera dar a José por ajudá-lo em um dever de gramática. João, seu pai, o enviou à escola de Chieri ao completar treze anos e, dessa casa de estudos, passou ao seminário recém-fundado na mesma cidade pelo arcebispo de Turim. José manteve seu prestígio de bom estudante e, durante o último ano dos cursos, foi o prefeito do estabelecimento. No ano de 1833, mediante dispensa por conta de sua pouca idade, recebeu a ordenação sacerdotal.
Após sua ordenação, o Pe. José Cafasso alugou um modesto quarto em Turim, onde viveu com seu amigo e condiscípulo João Allamano, a fim de prosseguir seus estudos de teologia. Mas não tardou em descobrir que os ensinamentos e o ambiente do seminário metropolitano e da universidade não o satisfaziam; então buscou até encontrar seu verdadeiro lar espiritual no instituto (“convitto”) anexo à igreja de São Francisco de Assis, fundado poucos anos antes para instruir os jovens sacerdotes, pelo teólogo Luigi Guala. Ao cabo de três anos de estudo naquela casa, o Pe. Cafasso passou com muitos louvores seus exames diocesanos, e o próprio padre Guala o nomeou leitor de seu instituto.

Quando o Pe. Guala perguntou ao seu auxiliar a quem convinha nomear como leitor, o secretário respondeu sem titubear: “Escolha aquele baixinho...” e apontava para Cafasso. Na verdade, o que primeiro chamava atenção no aspecto exterior do Pe. José era sua baixa estatura e certa deformação causada por uma curvatura da coluna vertebral. Em contrapartida, os traços de seu rosto eram finos e regulares; seus olhos escuros conservaram sempre um olhar franco e brilhante; tinha o cabelo negro e, de sua boca, geralmente iluminada por um leve sorriso, surgia uma voz extraordinária, cheia de sonoridade e matizes. Apesar da pequenez e deformidade de seu corpo, a presença do Pe. José era imponente e até majestosa. Frequentemente, seus contemporâneos o comparavam com São Felipe Néri e São Francisco de Sales, ao referirem-se a ele, e certamente o Pe. José tomou como modelos dignos de imitação esses dois grandes santos; de sua pessoa também irradiava aquela serena alegria, aquela bondade natural que São João Bosco, assim como muitos outros que o conheceram, descreviam como “a tranquilidade imutável de Dom José”. Portanto, em pouco tempo se comentava por toda parte que o Instituto de São Francisco em Turim tinha um novo leitor que era pequeno de corpo, mas de alma gigantesca. Seu tema era a teologia moral; não se contentava em instruir sem educar: não apenas procurava “ensinar”, mas esforçava-se por iluminar e dirigir o intelecto, a fim de iluminar e dirigir o coração; não apresentava os conhecimentos como algo abstrato, mas como uma chama viva que dava luz e vida ao espírito.
Muito cedo, também se tornou conhecido o padre José como pregador. Não recorria à retórica, pois as palavras lhe fluíam com naturalidade. “Jesus Cristo, que é a sabedoria infinita — disse certa vez a Dom Bosco —, utilizou as palavras e o linguajar que o povo ao qual se dirigia usava no dia a dia. Façamos nós o mesmo.” Consequentemente, não usava declinações obscuras nem instruções veladas por frases pomposas, mas, para falar à multidão, tanto à de seu auditório quanto à de seus alunos, recorria às palavras e modos de falar da conversa comum e corrente. O Pe. José figurou de maneira proeminente entre os homens esforçados que acabaram com os restos do jansenismo no norte da Itália, pelo simples meio de fomentar a esperança e a humilde confiança no amor e na misericórdia de Deus, enquanto combatia energicamente a doutrina moral que considerava a menor falta como pecado mortal. “Quando estamos no confessionário — escreveu certa vez — Nosso Senhor quer que nos mostremos amorosos e misericordiosos, quer que sejamos como pais para todos aqueles que vêm até nós, sem levar em conta quem sejam ou o que tenham feito. Se rejeitarmos alguém, se uma alma se perder por nossa culpa, teremos que dar contas dela; nossas mãos estarão manchadas com seu sangue.” Graças a suas ideias, o padre Cafasso participou ativamente na formação de uma geração de sacerdotes que sempre estiveram prontos a lutar contra as autoridades civis e nunca admitiram as teorias de que as relações entre a Igreja e o Estado consistiam em dominação e intervenção.*

O Pe. Guala morreu em 1848, e o Pe. Cafasso foi eleito para sucedê-lo como reitor da igreja de São Francisco e do instituto anexo. Logo se comprovou que era tão bom superior quanto subordinado. Seu cargo não era fácil, pois estavam sob seus cuidados cerca de sessenta jovens sacerdotes, procedentes de diversas dioceses, de educação e cultura muito variadas e, questão muito importante naquela época e naquele lugar, de opiniões políticas muito diferentes. Mas o padre Cafasso formou com eles um só corpo, com um só coração e uma cabeça; e se é verdade que a mão firme ao impor a disciplina estrita realizou boa parte do trabalho, a santidade e a inteligência do novo reitor fizeram muito mais. O amor com que cuidava dos jovens sacerdotes e dos curas inexperientes, assim como sua insistência em apontar-lhes o espírito mundano como seu maior inimigo, tiveram enorme influência sobre todo o clero do Piemonte; e, por certo, sua solicitude não se limitava a eles, pois religiosos e religiosas de outras regiões, assim como leigos, especialmente jovens, acudiam a consultá-lo e compartilhavam de seu interesse e solicitude. Dada sua extraordinária intuição para tratar com seus penitentes, pessoas de todas as classes sociais, clérigos e leigos por igual, acorriam em massa ao seu confessionário; o arcediago de Ivrea, Mons. Francesco Favero, figurou entre os que deram testemunho pessoal sobre os poderes para curar os espíritos abatidos que possuía o padre Cafasso.
Suas atividades, tanto nas pregações e no exercício de seu ministério para todos por igual, como na direção e educação dos jovens clérigos, não se limitavam à igreja e ao instituto de São Francisco, mas se estendiam a lugares muito distantes, como o santuário de Santo Inácio, nas remotas colinas de Lanzo, onde era muito conhecido e estimado. Quando foi suprimida a Companhia de Jesus, aquele santuário ficou a cargo da arquidiocese de Turim, e o padre Luigi Guala foi nomeado seu administrador, cargo que desempenhou até o dia de sua morte, quando o padre Cafasso o substituiu. Ali continuou seu trabalho de pregar e organizar retiros para clérigos e leigos, além de ampliar o edifício para acomodar os peregrinos e concluir a estrada que o padre Guala havia iniciado. Mas, entre as muitíssimas atividades do sacerdote, nenhuma chamava tanto a atenção do público em geral como sua solicitude pelos prisioneiros e condenados à morte. Naqueles dias, as prisões de Turim eram estabelecimentos espantosos onde os reclusos viviam amontoados em imundas salas comuns, em condições subumanas que, em última análise, os degradavam ainda mais. Tal estado de coisas era um desafio ao amor do padre José pelo próximo, e ele o aceitou de braços abertos. O mais famoso de seus convertidos entre aquele conjunto de representantes da escória da sociedade foi um tal Pietro Mottino, desertor do exército, que chegou a ser chefe de uma quadrilha de malfeitores muito famosa por suas façanhas.

Em Turim, as execuções eram públicas, e sempre houve testemunhas que viram como o padre Cafasso acompanhou mais de sessenta homens até o cadafalso, onde todos eles morreram arrependidos e consolados; aos sessenta, o Pe. José chamava seus "santos enforcados" e, a cada um, na hora da morte, pedia que rogasse a Deus por ele. Entre os executados figurava o general Jerônimo Ramorino, que havia sido ajudante de ordens de Napoleão I e depois um soldado revolucionário de fortuna na Espanha, Polônia e Itália; fora condenado à morte por desobedecer ordens durante a batalha de Mortara e, quando o sacerdote o convidou a se confessar, na véspera de sua execução, respondeu orgulhosamente: “As condições da minha alma não são tão más a ponto de me ver na necessidade de passar por semelhante humilhação.” Mas o padre José não lhe deu ouvidos, permaneceu com ele durante toda a noite e, no dia seguinte, depois de tê-lo confessado e dado a comunhão, acompanhou-o até a forca para vê-lo morrer como um bom cristão.
João Bosco e José Cafasso encontraram-se pela primeira vez num domingo do outono de 1827, quando aquele era um garoto vivaz e este um jovem sacerdote. “Eu o vi e falei com ele!”, anunciou orgulhosamente João ao chegar em casa. “A quem viste?”, perguntou-lhe sua mãe. “Ao José Cafasso. E eu te digo que é um santo, mamãe.” Catorze anos depois, Dom Bosco celebrou sua primeira missa na igreja de São Francisco, em Turim, e, posteriormente, ingressou no instituto para estudar sob a direção do padre Cafasso e colaborar com ele em muitas de suas tarefas, sobretudo na educação religiosa das crianças. Foi o padre José quem acabou por convencer o padre João de que sua vocação era trabalhar com crianças. Por isso, um salesiano, o padre João Cagliero, escreveu:
“Amamos e veneramos nosso querido padre e fundador, Dom Bosco, mas não amamos menos a José Cafasso, pois ele foi o mestre, conselheiro, guia espiritual e diretor material das empresas de Dom Bosco durante mais de vinte anos. Eu me atreveria a dizer que a bondade, as obras e a sabedoria de Dom Bosco são a glória de José Cafasso. Por ele, Dom Bosco se estabeleceu em Turim; por meio dele, começaram a reunir-se as crianças no primeiro oratório salesiano; a obediência, o amor e a sabedoria que ele transmitiu deram depois frutos em centenas de milhares de jovenzinhos da Europa, Ásia, África e América, onde agora recebem boa educação para viver como devem na Igreja de Deus e na sociedade humana.”

Tampouco foi Dom Bosco o único a receber tão grandes benefícios. Em José Cafasso encontraram inspiração e alento, ajuda e direção: a marquesa Julietta Falletti di Barolo, fundadora de uma dúzia de instituições de caridade; o padre João Cocchi, que dedicou sua vida ao estabelecimento de um colégio para artífices e outras boas obras em Turim; Domenico Sartoris, iniciador da instituição das Filhas de Santa Clara; e Pedro Merla, que se ocupou das crianças delinquentes; os fundadores das Irmãs da Natividade e das Filhas de São José, Francesco Bono e Clemente Marchiso, respectivamente; Lorenzo Prinotti, criador de um instituto para os surdos-mudos; Gaspar Saccarelli, fundador e organizador de um colégio para meninas pobres. Pode-se dizer que todos estes contribuíram também para a glória de José Cafasso.
Na primavera de 1860, o padre José previu que sua morte ocorreria dentro do ano seguinte. Imediatamente começou a redigir seu testamento espiritual, no qual desenvolveu os meios para preparar-se bem para morrer, que tantas vezes havia exposto nos retiros, na igreja de Santo Inácio: uma vida virtuosa e reta, desapego do mundo e amor por Cristo crucificado. No testamento acrescentou uma cláusula dispondo de seus bens e propriedades, que deixou em legado ao reitor da Pequena Casa da Divina Providência de Turim, fundada por São José Cottolengo. Entre os outros beneficiários estava São João Bosco, que recebeu uma soma de dinheiro, terrenos e edifícios contíguos ao Oratório Salesiano de Turim. Naquele tempo, Dom Bosco tentava superar suas dificuldades com o governador do Piemonte, contrariedades essas que preocupavam profundamente o padre Cafasso e chegaram a afetar sua saúde. No dia 11 de junho, exausto e doente, levantou-se do confessionário para recolher-se ao leito. Diagnosticou-se uma pneumonia e, em consequência dela, faleceu no sábado, 23 de junho de 1860, na hora do Angelus matutino.

Uma imensa multidão assistiu a seus funerais na igreja de São Francisco e na igreja paroquial dos Santos Mártires, onde São João Bosco pregou a oração fúnebre. Trinta e cinco anos depois, o tribunal diocesano de Turim introduziu a causa do padre José Cafasso, que foi canonizado em 1947.
Eis um caso em que a vida de um santo foi escrita por outro santo: Biografia del Sacerdote Giuseppe Cafasso, por Dom Bosco; no entanto, a biografia clássica é Vita del Ven. G. Cafasso, em dois volumes, de Luigi Nicolis di Robilant. Muito conveniente para uso ordinário é a obra do cardeal Salotti, La Perla del Clero Italiano (1947). Existe também outra biografia do cônego Colombero: Vita del Servo di Dio Don Giuseppe Cafasso. Veja-se também os livros sobre São João Bosco. Em inglês não há nada escrito sobre este santo, exceto uma referência em María Mazzarello, de Hughes; D. W. Mut (Munique, 1925), escreveu uma boa biografia em alemão. [1]
SÃO LIBERTO OU LIETBERTO, BISPO DE CAMBRAI (1076 d.C.)

Liberto, Lietberto ou Liébert, era descendente de uma nobre família de Brabante; seu tio foi Gerard, o bispo de Cambrai, com quem se educou e a cujo serviço esteve longo tempo como arquidiácono, primeiro, e depois como prepósito. Com a morte do bispo, em 1051, o clero e o povo o elegeram como seu sucessor. Uma vez que o imperador São Henrique ratificou a nomeação, Liberto foi ordenado sacerdote em Chálons e consagrado bispo pelo metropolita em Reims. Desempenhou-se como um verdadeiro pai para seu rebanho e não só trabalhou com incansável zelo por seu bem espiritual, mas também o defendeu das extorsões e opressões do castelão de Cambrai.
Em 1054, Liberto empreendeu uma peregrinação a Jerusalém, acompanhado por um grupo de pessoas. A comitiva havia chegado a Laodiceia quando, para consternação geral, foi informado que os sarracenos haviam fechado a igreja do Santo Sepulcro e que, naquele momento, era muito perigoso viajar à Palestina. Por isso, muitos dos peregrinos regressaram ao ponto de partida, e somente São Liberto e alguns poucos companheiros decidiram perseverar. Empreenderam a travessia, mas os ventos contrários desviaram a embarcação para Chipre; temendo cair nas mãos de piratas, os tripulantes conduziram o navio de volta a Laodiceia. Diante das contínuas dificuldades, os peregrinos acabaram por abandonar a empresa, sem terem visto a Terra Santa. Ao regressar a Cambrai, São Liberto, para consolar-se daquele fracasso, construiu um mosteiro e uma igreja aos quais deu o nome de Santo Sepulcro. A um dos monges daquele mosteiro, chamado Rodulfo, devemos a biografia quase contemporânea do fundador. Assim sabemos que, desde aquele momento, o bispo dedicou seus dias a cumprir estritamente com seus deveres pastorais e, que frequentemente, durante a noite, ia descalço à igreja para rezar. Isso lhe granjeou muitos inimigos. Certa vez, os esbirros de Hugo, o castelão de Cambrai, a quem o bispo havia excomungado pelos desmandos de sua conduta, surpreenderam-no e o encerraram no calabouço do castelo de Oisy. Arnulfo, o conde de Flandres, resgatou o sequestrado e, pouco depois, Hugo foi expulso de Cambrai em meio à geral alegria da população. Ao que parece, o último serviço prestado por São Liberto, nos últimos dias de seus vinte anos de episcopado, foi este: a cidade, cercada por forças invasoras, estava em iminente perigo de cair diante de um ataque inimigo; mas o bispo, já então gravemente enfermo, fez-se conduzir em liteira até o acampamento inimigo e, graças à sua presença, às suas elocuentes razões e às suas ameaças, convenceu os invasores a se retirarem sem desferirem o golpe que planejavam. São Liberto ou Lietberto morreu em 23 de junho de 1076.
O monge Rodulfo escreveu a biografia de São Liberto depois de recolher os dados da Gesta Episcoporum Cameracensium, aos quais acrescentou abundantes informações próprias. Seus textos foram publicados no Acta Sanctorum, junho, vol. V, e em Pertz, MGH., Scriptores, vol. VII, pp. 480-497 e 528-538. [2]
Referência:
Butler, Alban. Vida dos Santos, vol. 2, pp. 629–633. Edição espanhola.
Ibid. pp. 628-629.
NOTA: Convém registrar aqui os pontos de vista de Gioberti sobre o instituto de Turim: “É difícil definir um instituto como o de São Francisco. É um colégio, um seminário, um mosteiro, um capítulo, uma penitenciária, uma igreja, um estorvo (cura), uma corte (cúria), um tribunal, uma academia, uma câmara municipal, um partido político, um antro de sedição, um escritório de negócios, uma delegacia, um laboratório de casuística, uma semeadura de erros, escola de ignorância, fábrica de mentiras, rede de intrigas, ninho de fraudes, depósito de murmurações, dispensário de tolices, mercado de favores...” etc.


























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